March 04, 2012
Vontade
Antes de vestir as calças, eu a como mais uma vez. Saio sem pressa da casa. Ainda é madrugada. O bairro nobre, antigo, ainda contém focos de resistência nativa, com árvores que rasgam o concreto. Sílvia ainda é tão bonita quanto era quando a vi pela primeira vez.
Mas o que ela significava para mim, perdeu-se com o tempo.
E pensar que, pouco mais de um ano atrás, eu faria tudo para ter essa mulher. Hoje, seu buraco úmido mal me satisfaz. Entro no carro, também sem pressa, ouvindo o grito das cigarras. Um jato sonoro estridente de tesão incontido. Um gato sai debaixo do palio, como que escorrendo, branco, pela pista.
Vou numa padaria da 17 de Agosto. A garota do caixa é bonitinha. Pego dois pães, patê, leite e volto pro carro. Como no Palio enquanto escuto rádio. No banco de trás, tudo que possuo.
Roupas, agenda, um envelope madeira com dinheiro e documentos. Pego a agenda e um bloco de notas. Ainda não são 7 da manhã. E resolvo fazer o que tenho de fazer por aqui, enquanto ainda estou descansado. Razão para ter vindo comer Sílvia.
Duas ruas a esquerda, paro o carro. É outra casa, o que torna tudo mais fácil. O portão está aberto, tem gente saindo. Deve ter sido uma bela duma festa. Um bêbado caído no jardim parece com quem vim visitar, mas quando me aproximo percebo que não é ele. A garrafa de uísque derramou-se pela metade. Pego ela, e o bêbado, meio acordado, protesta, mas a puxo com força e bebo no gargalo. Jogo a garrafa vazia longe e a escuto se estilhaçando.
A casa me convida para entrar, abrindo para mim suas portas como lábios sedentos. Eu não me faço de rogado. Bêbados, de sexo, drogas e enfim, bebida, estão caído por toda casa. O cheiro azedo de festa de ontem contamina o local, assim como a música ruim e sem melodia.
Uma escada em espiral dá no primeiro andar e sigo por ela após confirmar que, quem procuro, não está aqui embaixo. O corredor, curto, leva para três aposentos e escolho aquele que dá para a frente da casa.
Abro a porta e vejo ele sentado numa escrivaninha. Uma mulher ruiva, com a boca entre suas pernas. Não preciso deduzir muito pra entender a cena. Em um gesto mesquinho, estendo a minha mão e ainda da porta, faço ela partir seus dentes no pau dele. O urro dele invade a casa enquanto o membro cai no chão, ao lado da mulher que cospe sangue e pedaços de dentes.
Ele vocifera por baixo das palavras que o curam e parte para mim dobrando sua massa muscular. Com outro gesto, faço suas pernas quebrarem. Nesse embalo é atirado na parede com força, que não o recebe com o dúbio charme de uma chupada de fim de festa. A mulher corre escada abaixo. Não ligo. Em minutos vou estar no carro e indo pra longe daqui. O que me interessa é saber o que ele sabe.
- Onde ela está.
- Fodahshe.
Ele balbucia pelo que resta da boca.
- Você não sabe quem sou. Jairo me disse que você sabe onde ela está.
Ele sabia. Sabia mais ainda quando falei em Jairo.
- Agora que você tem uma idéia, comece a falar.
Ele disse. E foi a última coisa que disse.
***
Desci a 17 de Agosto e toda a Rui Barbosa. Próximo ao Derby, meu pneu fura. Lógico, não furou sozinho.
Eles são três. Tão clichê isso. E não tenho esse tempo. Puxo dentro de mim a Vontade e empurro na direção deles, de seus olhos.
Eles resistem, mas minha Vontade vem de dentro, meus testículos doem. E os olhos deles implodem. Isso não os irá impedir, mas os atrasa um pouco. Ignoro o carro e pego o primeiro ônibus que passa.
Não esperava isso. Alguma intervenção, sim. Mas uma execução pública? Nunca. Eles me temem muito mais do que imaginava. Isso é bom. Deixe que tenham medo de mim, que se escondam em seus santuários e fortes, que me deixem livre para chegar até ela. Preciso chegar até ela. Só preciso chegar até ela e me deixarão em paz.
A viagem demora. O ônibus se arrasta pela cidade como se estivesse sofrendo com o calor. Quando desço no Pina já passou das 9. O endereço fica próximo da Igreja, é um prédio baixo. Eu chego em frente ao apartamento, mas pressinto algo errado. Ela não está aí. Nunca esteve.
A porta se parte no meio. Um parto de farpas grandes e pequenas. Elas voam em minha direção com desejo homicida. Sinto sua presença de dentro do apartamento. Ele é sujo, poderoso. Ele é exatamente como ela gosta.
Minha carne é rasgada pela sua Vontade e meu corpo cai no chão, inerte. Ele é novo nisso. Sua Vontade é bruta, ele é bruto. Isso nos temos em comum. Ele chega perto e nossos campos se chocam. Uma energia primal, masculina racha a realidade em nossa volta.
Eu sussuro por entre lábios cortados.
- Minha vez.
Minha Vontade ergue meu corpo e sugo a energia dele para me dar força. Meus dedos trêmulos trabalham o seu corpo com desespero, utilizando de ambas as Vontades. Seu abdômen se expande e se abre, me banhando de sangue que uso para fechar minhas feridas.
Com um segundo gesto, já firme, puxo seus intestinos para fora. Ele grita em desespero e tenta com as mãos e não com sua Vontade, se recompor. Amador. Poderoso, mas um estúpido amador.
Minhas roupas estão imprestáveis e entro no apartamento com ele, arrastando-o pelos intestinos e usando minha Vontade para mantê-lo vivo.
- Você fede a merda.
Ele responde tentando bater em mim. De todos os gestos patéticos, esse é o pior. E enquanto tomo banho e visto outras roupas, mantenho nossas Vontades em curto, lhe enviando ondas de dor que aprendi a suportar anos atrás. Ela me ensinou.
Nossa conversa é curta. Logo percebo que ele não sabe como proteger seus pensamentos e descasco-o de sua Vontade. Deixo ele vazio, balbuciando algo, cortado da Vontade e logo, morto.
***
Quando chego à favela, o sol parece queimar o mundo com ódio. Muita gente está nas ruas. Eu sinto que estamos próximos. Não sei ainda onde ela está, mas meus pés me levam até ela sem que eu precise mandar que se movam. Os sapatos são ruins, menores que os que calço. As roupas caíram bem, mas os sapatos me matam e não me atrevo a chamar sua atenção tão cedo, deixo a dor fluir então.
E ela me lembra dor e a dor me lembra ela. Nossa despedida foi assim, desagradável. Ela me usava, eu sabia disso e por fim, a confrontei. Lhe chamei de vampira, sucubus. Disse que ela não era nada sem a Vontade. Fiz tudo que não deveria ter feito. E saí de lá para fazer meu nome. O que fora muito, muito fácil.
Como discípulo dela, fui visto com desconfiança. Ódio, às vezes. Inveja, sempre. Logo usava e abusava da Vontade e o tédio me corrompia. Que graça tem o mundo quando todos são tão facilmente sobrados, quando posso, ao desejar, destruir o mais forte dos homens, possuir qualquer mulher?
E ela me avisou sobre isso. Sua razão para viver isolada, controlando sem controlar, dominando sem apoderar-se. Eu era aprendiz, amante, mensageiro, assassino... Incrustada em seu isolamento, através de mim ela exercia sua Vontade. E liberto, abusei de tudo que aprendi.
A favela e meus pés cantam juntos uma canção de caminho, que não posso ouvir, me dirigindo por ruelas malcheirosas e sinuosas. O chão é calçado, mas capim cresce por ele. Distraído, não percebo a ausência das pessoas, e sinto, só agora, sua proximidade. Ela me acha e não estou preparado para ela. Nunca estive.
Sua Vontade esbarra contra a minha e me atordoa. Eu suspiro com a explosão de lembranças que isso me traz. Distrações. É esse seu jogo. Será que ela está com medo? Que não entende porque vim? O ar crepita com nossa energia. E o tempo de pensar acabou.
Ela aparece por detrás de uma casa. Eu me espanto com o quanto ela transforma fácil seu corpo. E me vejo imediatamente excitado. Ela se aproveita disso e meu pênis incha, rompendo minha Vontade e tomando conta do meu corpo. Com violência, minha Vontade reage. Nosso choque nos modifica, um ao outro, e nossas mentes não são mais nada, só duas Vontades que duelam. Por alguns segundos, nós não passamos de dois pedaços de carne, que chicoteiam um ao outro, rodopiam no ar, girando, cortando, tentando destruir-se, então, ambos param, exaustos.
Eu caio ajoelhado. Ela me olha, cansada, mas não derrotada.
- Me ensine.
Eu suspiro, sem forças.
- Me ensine a não ser só.
Ela estica o braço, me arranca do olho a lágrima. Me abraça, me beija, curando a nós dois da solidão.
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