April 21, 2012
O Cavalo do Cavaleiro
Ele tem 11 gatos. Dois dormem ao leste, dois ao sul, dois ao norte, dois ao oeste. Dois dormem sobre ele. Um sobre seu peito.
Outro, sobre sua cabeça. Ele não sufoca.
Mas ele não respira.
O outro gato, corre o mundo.
Ele não sabe se tem os gatos ou se os gatos o tem. Mas sempre fora assim, ele e os gatos. Desde Alexandria.
E sempre onze.
E ele nunca fora assim. Ele nasceu em Recife. Foi criado em Recife. Nunca saiu de Recife. Ele envelhece e não morre, e renasce, como bebê, todo dia.
A placenta que brota do ar é devorada pelos gatos. Seu único alimento.
Mas eles mesmos envelhecem e morrem. E ele então busca outro gato.
Seus gatos eram diferentes. Esguios, velozes, ferozes. Seus gatos hoje são matreiros, espertos, mas igualmente capazes de matar.
Tantos gatos. Seus espíritos guardados muitas vezes em ânforas. A gordura de corpo que usara, usada para tapar os recipientes.
Guardiões de si mesmo fora desse mundo.
Escravos do Cavaleiro. Escravos dele, como é hoje, o homem que nasceu, foi criado, nunca saiu e foi, enfim, tomado em Recife. O Cavalo.
Cavalo que hoje sai com o cavaleiro. Mesmo estando seu corpo lá, morto, esperando o amanhecer para renascer.
Cavalo, Cavaleiro e Gato, os três em um só.
O Gato entra na casa dela.
Uma sombra que gira e corre entre os móveis.
Ela acabou de deitar. O Gato sabe disso e sabe que tem pouco tempo.
Seu corpo leve sobre na cama.
Ele deita-se a seu lado.
Respira o seu sono de dentro de sua boca e nariz.
Desce e foge.
Ladrão de sonos.
Ela acorda.
Sua olheiras já se tornaram parte de sua feição.
Ela chora de sono que não tem.
Deita-se, revira.
Liga o computador e espera os incautos que ainda vão dormir (que inveja!) e os que já acordaram (que inveja!).
E se revira. Sem sono. Sem. Sono.
Natália pensa até em ir no vizinho. O homem dos gatos.
Sujeito estranho, mas atraente. "Gostosinho", como disse Guga, quando a amiga da faculdade veio visitá-la anteontem.
Ela tem pensado muito nele. Será que ele tem a ver? Será que os gatos a assustam? Ela nunca teve problema com gatos. Já até criou duas.
Mas desde que ele se mudou, insônias são constantes.
E ele é meio estranho. Simpático, mas estranho. "Nem estou pensando nos gatos", ela pensa.
Ela só dorme quando o sol se levanta.
Quando ele acorda, após renascer, o ladrão de sonos.
Ele saúda o sol e devora os animais deixados a seus pés.
Olha o celular enquanto os gatos desfazem o círculo, permitindo as ligações chegarem e partirem.
Com o círculo partido, dorme o Cavaleiro. Sou apenas o Cavalo.
Acordo. Manoel é meu nome. Lembrar. Lembrar sempre meu nome que tatuei nos dedos. Nome, nascimento, nome dos pais.
Tomo um banho, me limpo dos pelos e cheiro dos gatos, do sangue do meu renascimento.
Que fome. O que os gatos matam alimentam apenas o Cavaleiro.
Vou ao mercado, compro comida, uma revista, jornal.
De onde vem o dinheiro? Qual seu limite? Não sei.
Enquanto ele dorme, pouco lembro. Ele me tem, mas não tenho seus segredos.
Sou apenas o Cavalo. Não. Sou Manoel. MANOEL.
Paro um pouco. Respiro com as sacolas de compras nos braços.
O suor pinga.
É tão fácil deslizar para o esquecimento.
As vezes é isso que queria, esquecer.
Então, ela o empurra.
- Eiii! Peraí, você é...
- Natália, seu idiota! NATÁLIA!
- Minha vizinha. Calma. Não!
Ela lhe dá um soco no olho. A dor é aguda, é como se o osso vibrasse e um monte de agulhas entrasse cabeça adentro. Seu impulso é bater de volta, mas ele não pode.
No íntimo, ele lhe dá razão.
- Seu filha da puta! Quero meu sono, porra!
- Calma, a gente conversa! Ei ei! Calma!
Ela olha para ele com raiva, percebeu, quando acordou do maldito cochilo, o que tem acontecido. Teve certeza quando o viu na rua.
Bem disposto, renovado, carregando as compras. Ela soube. Ela teve certeza. Como? Não importa. Há coisas que desafiam a razão.
Alguém roubar seu sono desafia a razão, mas ela soube e foi, com fúria feminina, nos pijamas que pouco escondem, bater nele até que tivesse seu sono de volta.
Não lhe deu satisfação esmurrá-lo. Ela gosta dele, de alguma forma. Não sente nele um predador, não sente nele alguém mau. Ela o vê como vítima. Sabe que podia bater nela e ele não o faz. Ela está agindo de forma irracional e o escuta e se acalma.
- Está bem. Mas eu SEI! Eu sei o que você está fazendo! Não sei como, mas eu SEI!
As pessoas param na rua para olhar. Um carro para. Os bêbados do bar que mal abriu, olham com curiosidade. A discussão, diferente de todos os outros dias, não é no espaço sagrado do bar, é fora da bolha, é na rua que os observa observada.
- Venha, vamos sair da rua.
Seus cabelos se mexem agitados, olhando um lado e outro, mas sua raiva não permite a vergonha, apenas o acompanha.
Vão para a casa dele. Os gatos não chegam perto. Olham ela, mas sem dar grande importância.
- Sente. Quer comer alguma coisa? Beber?
- Não.
Sua voz ainda sai seca, raivosa. Ela queria se controlar mais.
- Bem, eu preciso comer.
Eu vou até a cozinha e preparo um sanduíche. Bacon, ovos, hambuguer de frango, verduras. Ela sente o cheiro.
- Eu quero um também, se você não se incomodar.
- Não, claro que não. Estou em dívida.
Ela sabe, mas não diz nada. Está sim, morrendo de fome.
Agora, depois da discussão, durante a calma, sente-se ridícula.
Eles comem em silêncio. Bebem suco de laranja.
Quando terminam, ele recolhe os pratos e copos. Volta para a sala.
- Então...
- Você roubou meu sono.
- Não.
- Roubou. Roubou sim. Eu sei que roubou!
- Calma. Eu sei. Você está certa.
Agora, incerta, pois a realidade se torna ainda mais estranha com sua admissão, ela se cala e olha, confusa.
- Veja, eu sei que isso pode parecer maluco e soa ridículo, eu sei, mas meu corpo foi tomado. Não se levante. Me deixe continuar, por favor. As vezes...as vezes nem lembro quem sou. Por favor, me escuta. Me deixe respirar. Quem rouba seu sono é quem ocupa meu corpo quando durmo, precisa, para sobreviver, roubar o sono de outros. Mas prometo, ele não fará mais isso, não com você.
Quando ele termina de falar, percebe os olhos dela. Não sobre ele. Mas sobre os gatos. Eles formam um círculo a sua volta.
Despreocupados, pelo menos em aparência, vieram junto com a conversa.
- Eles são sempre tão estranhos?
- Não. Mas eles obedecem ao Cavaleiro.
- Cavaleiro?
- Sim, é como eu o chamo.
- E você...você é um cavalo? Ele pode ir para outros corpos?
- Não, não mais. Não se assuste. Eu..eu fui punido. Por isso ele tomou o meu. Mas alguém o enfeitiçou e ele agora está preso. Estamos presos.
- Que horrível.
- Não sei. Ele não é mau.
- Não é mau? Você... Ele não me deixa dormir bem faz dias! Eu posso morrer, acho.
- Ele não vai mais roubar seu sono, prometo.
- Promete?
- Prometo. Mas ele vai querer algo em troca.
- Como assim?
- Não sei ainda. Mas vai. Eu o conheço um pouco.
- Eu não acho que vocês possam exigir nada de mim.
- Não, não temos o direito, mas ele tem o poder. Me desculpe. Estou sendo sincero com você.
Ela olha para o chão. E depois olha para ele. Vê bem seu rosto e sente um pouco de pena.
- Está bem. E desculpe pelo soco.
- Não se preocupe, estarei bom amanhã. Olhe, preciso também dormir um pouco. Mas venha aqui quando quiser, está bem? Eu te procuro depois.
- Está bem. Meu nome é...
- ...Natália. Eu sei. Sonhei com você. É outra coisa difícil de explicar, mas sonhei com você. Meu nome é Manoel.
E ele a acompanha até a porta e ela vai.
Dormirá, finalmente, bem, depois de tantos dias.
Ele sonhou com ela.
Seu nome, tatuado em seu dedo.
Natália.
O Cavalo não tem o poder do Cavaleiro, mas ele corre.
Corre pelo futuro incerto, mas de estradas sulcadas.
Corre e vê além.
Corre além de quem o monta.
O futuro talvez pertença a Deus, mas é visto por ele.
E ele a conhece. Natália.
E sabe que partilharão, um dia, do mesmo círculo.
Não hoje, não amanhã, mas um dia.
A cidade irá ser devorada pelas águas.
Governos e então reinos, irão ruir.
Mas o homem de Alexandria, e o casal do Recife irão estar, um dia, juntos.
Vendo as estrelas se apagarem.
Os gatos lambem sua pele e sobre suas pálpebras.
Guardiões de homens e deuses, por tantos séculos.
Devotados.
Aos imortais.
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