February 16, 2013

Vermelho


Minha mãe sempre dizia que eu era o homem mais importante do mundo.
Eu nunca havia acreditado nisso antes.
Hoje, concordo com ela.
Pena que estou em Marte.

O foguete, na falta de termo melhor.... Afinal, "Unidade de Contato Intra-Atmosférica", sempre ofendeu minhas poucas sensibilidades... Bem, o foguete partiu faz 15 minutos.
Faz 15 minutos que sei que vou morrer.
Faz 15 minutos que sei que vou morrer em 4 horas e 35 minutos.
E sabe do que mais?
Tudo bem.
Não é como se eu ainda pudesse fazer nada mais excepcional na vida do que ser o primeiro homem a morrer em Marte, certo?

Foi por isso que me atrasei?
Foi por isso que, mesmo esbaforido, tirei o pé da escada, soltei o corrimão, deixei a nave ir sem acionar algo que abortasse tudo?
Eu não sei.
Eu devia procurar um analista.
Pena que não conheça nenhum que atenda por aqui.
Sabe... Em Marte...

Eu acho que foi a rocha.
Sabe quando as pessoas viram a face de Jesus em Marte?
Lógico, ninguém sério levou a sério.
Não dá, né gente? Isso faria de Rice Burroughs o que? João batista 2.0?
Mas ainda acho que foi a rocha.
Não a MESMA rocha. Só mais uma. Uma "rochinha". Uma, como tantas outras em Marte.
Vermelha.

Uma rocha que me conecta a uma lembrança que nada tinha haver com rochas.
Minha mãe passando as mãos nos meus cabelos.
Eu tinha o quê? Três anos? Quatro?
Acho que o vestido dela era vermelho. Talvez seja isso.
O vestido vermelho.
Ela morreu dois anos depois.
Nunca, de fato, conheci minha mãe.
E dela, só lembro mesmo de seus dedos, desalinhando meus cabelos com um toque sedoso.

Melhor sentar, né?
Procurar uma pedra pra sentar não é tão difícil.
Marte sabe prover quando quer.
Será que eu imaginava o quanto isso aqui era tão marrom e escuro antes de chegar aqui?
Será que eu sonhava com uma civilização de poetas, navegando em um planeta Veneza, entrecortado por canais?
Acho que não. Nunca fui ingênuo.

Não achei, por exemplo, que meu pai fosse voltar.
Um casal de vizinhos me achou e me adotou.
Não, não eram Martha e Jonathan. Não eram perfeitos. E nem sou Superman.
Não penso muito sobre eles.
É, eu sei. Mas me julgue depois que eu morrer.
Não demora.

"Ground control to major Tom!"
Demorou.
"Ground control to major Tom!"
Eu decido não responder.
Afinal, por outra coisa, já me decidi. Que diferença poderiam fazer agora?
"Ground control to major Tom, your circuits dead, there's something wrong."
Eles são insistentes.
"Can you hear me, major Tom?"
Suicídio não causa surdez, gente...

Eu sou ingrato.
O programa me deu tudo que eu queria.
Segurança, amigos.
Mais tarde, incidentalmente, uma família.
"Tomás", ela dizia, com aquele sotaque americano forte, "Where is Charles?".
Ela tinha ido no carro, pegar refrigerante. Éramos três.
O aniversário dele, os patos, o lago que ele gostava tanto, um piquenique.
Eu me distraí. Fazendo sanduíches.
Estúpidos sanduíches.
Ele tinha pulado na água, que estava rasa.
Os gritos vieram no trotar de mães e crianças.
Ele bateu com a cabeça no cimento. Alguma coisa mal terminada nesse lago artificial.
Nunca entendi o quê.
Ficou em coma por três dias.
Voltou.

"Can you hear me, major Tom?"
O tom agora é mais preocupado. Menos profissional.
Acho que é Richard.
"Can you hear me, major Tom?"
Desligo o rádio. Não quero ouvir meus amigos lamentando minha morte.
Nunca tive essa fantasia.

Charles cresceu. Mas ela e eu, diminuímos.
Éramos ainda três, mas eu e ela, tão fechados em nós mesmos, diminutos, tão pequenininhos, em nossa culpa e medo.
Os dias eram controlados pelas pílulas que tínhamos de dar e a ele.
Vermelho, escarlate e ferrugem.
Vermelho, Escarlate e ferrugem.
Minhas horas tinham cores.
E ainda assim, tentamos ser felizes.
E aí Charles morreu.

E a rocha me lembrou de minha mãe, passando a mão nos meus cabelos.
Assim como Cynthia passou a mão nos cabelos de Charles.
Ele, morto, como uma pedra, nunca podendo ter essa lembrança.
Sabe... Há um ponto que temos de parar.
O meu ponto é aqui.
Onde não ignoro meu filho por causa de estúpidos sanduíches.
Onde sou o homem mais importante do mundo.
O planeta Terra é azul. E não há nada que eu possa fazer.
45 minutos.
Não demora.

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