October 11, 2013

Santeria


A bagagem estava pesada. Olhou para a mesa, chutou a ponta e a fez girar. Que importava? Alguém iria colher seu lixo. Talvez alguém enviado pela construtora iria, talvez com um pouco de vergonha e cerimônia, perguntar o que fariam com as coisas deixadas pelo antigo inquilino, talvez ele me mesmo ficasse com tudo para ele. Que importava? A bagagem estava pesada.

O fechar da porta doeu um pouco. Tanto nasceu e morreu ali dentro. Era um mundo que deixava morrer, mas o primeiro passo é sempre o mais importante e sair dali era um princípio. E ainda faltavam outras. A próxima, era o elevador. A porta metálica, o rangido familiar, o medo de partir-se nas madrugadas em que o uso comum se tornava impróprio quando se fazia em nu particular.

A porta abre. O hall de entrada. O halls na boca. Tentando arrancar o amargo gosto que sobe do estômago, anda pra frente. Sem despedir-se, o elevador sobe. O carro na garagem é convidativo. Mas não é seu. Nunca foi. Dirigia por comodidade, sempre gostou da liberdade distinta de usar o que é dos outros como se fosse seu. Segue pelo estacionamento, o cheiro de óleo, a lembrança de fluidos, o inclinar do banco, o tesão que se esparrama no incomodo espaço do veículo. Não resiste e olha ainda para a placa que nunca conseguiu memorizar. Sempre odiou números.

O segurança guarda o prédio e só. Olha e deixa passar quem se exila. Nunca se bicaram, esse não é o vigia bom, simpático, prestativo. Esse olha cobrando um respeito que sente devido, de uma realeza em exílio, porém, sempre, realeza. Sorri quando passa por ele. Sempre fez isso. O ladrão que cospe da ingenuidade do rei.

Passou por todas as portas. Olha para a rua sem olhar para trás e segue caminhando. Passa um táxi. Passa outro. Passa ouro, amarelo, desejoso, mas para a passagem só lhe restam duas moedas de ferro. E o ônibus que vem não lhe é silêncio e por isso, anda. Aproveita a madrugada para recompor as pernas. A pracinha lhe recorda calcinha, vestido curto, botão da calça, sapato forçando o chão que força o corpo que se aperta na parede que faz parte da praça que lhes esconde com árvores e sombras e silêncio. E nenhum dos dois gritou quando o gozo chegou e agora só resta a bagagem pesada.

Logo vê a ponte. Sente no ar, as águas. O rio escuro, fundo, sujo. Joga as chaves longe. Uma ponte que queima. Desce rápido, sem pressa, mas empurrado pela gravidade da bagagem. No caminho, vai rasgando as fotos e deixando cair por entre redemoinhos, que vão levar pro mar, que não vai a lugar nenhum. Ninguém vai. Ninguém viu. A noite esconde.

Passa uma bicicleta que joga jornais. A notícia, todos já sabem: vai embora. Amanhã saberão outra: foi embora. Quem lembra, lembrará? Não sabe. Não importa. As amizades se faziam polares, cada uma em seu quadrado, um canto que não permitia triangulação alguma. Sente falta das chaves, não das pessoas. Do peso delas na mão, da força simbólica na sua história. O falar constante, o olhar penetrante, a boca que exalava ares de inveja com bafos de recalque, que se fazia legião então copiado comportamento, deixa para trás.

Se despe. Solta os cabelos. Olha sem a cobertura de um presente perfeito para o futuro acerto que será cheio de erros. Olha para a rua e vê um ônibus. Não sabe para onde. Não sabe para onde irá. Deixa a bagagem na parada, parada. E sobe. Olha pro cobrador.

- Pra onde vai?
-
- Quanto custa?
-

E das duas moedas de ferro só lhe restam a memória do peso. Senta só. Olha uma última vez para trás. Deixa que o veículo vá em frente.

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