June 17, 2021

Verde


A água fria cai do chuveiro e se esconde, rápida, no ralo. Um espiralar lento. Eu queria ir junto com ela. Deixar o mundo a minha volta e escoar para a escuridão. O momento é interrompido por uma ligação que prefiro ignorar. Não preciso olhar quem liga. Eu sei quem é. É tudo tão cansativo. Preciso descansar, me desligar. Não é fácil, mais nada é fácil.

Pego o sabonete verde e continuo com o banho. Me ensaboo, sentindo o cheiro estranho. Agradável, mas com o qual não estou familiarizado. Não é meu. Nunca conheci o dono. Um legado de quem morou antes aqui. Um resto. Algo sem importância, que foi deixado, perdido no caminho.

Pego a toalha nova, com saudades da antiga. Será que o antigo morador sente a mesma falta? Será que se perde na busca por uma nova familiaridade? Como um viciado, busca a experiência antiga no novo? No pisar desse chão que me é estranho, nos sons da vizinhança, nos cheiros, na luz que entra filtrada por janelas que agora são minhas. Na pressa, na pressão, perdemos coisas tão mínimas e tão essenciais. Mas eu finjo que o que me importa são as caixas. Espalhada no novo lar, cada qual com seu tamanho, peso, conteúdo. Não são muitas. Muito do que vejo é novo.

Quando o desastre aconteceu, não tive tempo. Quem tem tempo? Mas sobrevivi. E trouxe as caixas comigo. Nelas, pedaços de minha vida. Meu pai me ensinando a nadar. Minha primeira surra. Uma mordida. Um sorriso. Um brinquedo. Gente que morreu, gente que viveu e envelheceu, gente que pariu ou partiu.

Fora do apartamento, o corredor curto dá em uma escada e uma rampa. Existem poucos apartamentos por prédio e cada prédio tem pequenas instalações de primeiros socorros e emergência diversas. Muita luz entra pelas paredes, que são opacas apenas nos apartamentos individuais, permitindo uma certa privacidade. Mesmo neles, notei que essa pode ser regulada. Meu contato com o mundo exterior já se dá então no umbral de minha porta. Árvores que não são árvores, grama que não é grama.

Pelos meus novos olhos, vejo o céu esmeralda. O cheiro do mundo é diferente. E não consigo conter o sorriso.

E ele morre rápido na boca. O peso de tantos gritos silenciosos me achata. Séculos se passaram e ainda assim, nos alcançam. O enorme vão entre galáxias nos separa de bilhões, talvez trilhões de mortes, mas existem legados que não podemos esquecer, que agora fazem parte de nossa espécie. As estrelas são diferentes, mas nós somos os mesmos.

As roupas foram feitas sob medida para meu novo corpo. E assim como boa parte desse corpo, os materiais de sua composição foram criados sob medida para esse mundo. Ainda sou humano, ou assim me disseram. E não é como se tivéssemos muita escolha. Quando uma espécie alienígena capaz de dizimar toda a vida inteligente de uma galáxia começa a fazer seu trabalho, não é como se você tivesse tempo de escolher em que condições você vai viajar para outra galáxia.

Além das vidas perdidas, nada do que ficou para trás é insubstituível. É essa a propaganda que temos de engolir. Uma insensibilidade que, se está embutida nesse corpo, ainda não foi ativada.

Sinto outra ligação. É a terceira em menos de 30 minutos desde que despertei.
- Oi, mãe.
- Rogério! Por que você não atendeu logo? Olha, preciso de sua ajuda! Tem tanta coisa aqui para arrumar! Você acordou bem?
- Ainda estou me ajustando, mãe.
- Mas venha logo, tá? Lembre: minha casa fica na rua paralela a a sua! Beijos! Te amo, filho!


Além das ligações de minha mãe, existem outros alertas. Em sua maioria, alertas das autoridades coloniais. Informações sobre elementos específicos da fauna e flora do planeta, manuais sobre a implementação da burocracia e documentação do governo provisório e pedidos de voluntários para várias funções.

Leio os informes enquanto exploro o mundo. Tudo tão verde. Sei que é um efeito colateral da visão e que eventualmente vai passar, mas há uma estranheza em ver o mundo assim, em matizes de uma única cor, um monocromático relaxante que impede um desnorteamento causado pela vibração e pungencia da nova experiência. Isso foi pensado por alguém? Sempre imagino que todos os aspectos de uma tecnologia tenha sido averiguados, mas por experiência, sei que raramente não passam de subprodutos de uma sorte que permeia de forma circunvizinha a nossa inteligência.

Gente verde perambula pela cidade artificial, entre grama falsa e árvores de mentira. Não muito diferente do que nos tornamos para poder colonizar esse planeta. A estética das falsas plantas é talvez um um subproduto disso que circunvizinha a inteligência que as construiu, beneficiando os colonizadores com o conforto psicológico de saber que estamos em um lugar não tão diferente da terra. Apenas mais uma fabricação.

- Rogério!
A mulher verde grita em minha direção e corre com os braços estendidos. Assim como na ligação, só a "reconheço" pela informação jogada no meu campo de visão que a indentifica como tal. O seu corpo deve ter a mesma idade que o meu, sua voz poderia ser melódica se não fosse o ar estridente que minha mãe sempre imprimiu ao falar. Zélia não seria ninguém sem uma exclamação para pontuar o que diz.
- Meu filho! Que saudades!
- Também, mãe.
- Olha, que bom que você veio! Tenho muita coisa para desembalar! Tanta coisa pra fazer...
- Também, mãe.
- Você está bem? Tudo aqui é tão verde e nós estamos tão diferentes! Eu mal me reconheci, Rogério!
- Estou sim, mãe. Vamos, me mostre no que você precisa de ajuda.

Fomos andando juntos até o apartamento dela. As montanhas se moviam a distância. Não eram elas, mas nós é que estávamos caminhando sobre o planeta. Não há um análogo real para a categoria de seres que são nativos nesse mundo, mas todas as formas de vida encontradas, são de uma forma ou de outra nômades.

A plataforma onde estão nossas base, que é um conjunto de oito prédios baixos e feitos com os materiais mais levels que pudemos construir, está pousada sobre o que parece ser uma floresta de anêmonas que caminha lentamente pelas planícies do planeta. Uma colônia sobre uma colônia. Pelo que li, mesmo sendo muito parecidas, são também distintas a pontos de haverem colônias predadoras de outras e que apesar de serem feitas de animais distintos - tanto quanto os cientistas puderam avaliar - eles se interligam de tal forma que parecem compor uma única criatura.

Chegamos ao apartamento dela. Uma pilha de caixas ainda esperando serem desmontadas. Todas, devidamente etiquetadas. Muitas, são memórias. Algumas, são minhas.

- Eu não queria isso.
- Eu sei, meu filho. Mas acho que lhe fará bem.
- Duvido.
- Talvez, agora, você duvide. Mas a vida não é feita só de alegrias. É feita de dor. É o contraste que importa.
- Você não teria como ser mais clichê, mãe. Eu sei o que passamos, e são vocês, você, e tantos aqui, que ignoram o que deixamos para trás, que tratam tudo como um...

Ela o bate tão forte que ele só percebe depois que é ela mesma que já veio correndo para o ajudar a levantar. Mas ele quer? Quer levantar e encarar as decisões que deve tomar. Sentir a dor de novo. Repetir tudo. Lembrar? Ela o puxa, mas ele fica sentado no chão. Ela o olha como olhou a milhares de anos at´ras, quando ele não passava de uma criança birrenta.

- Não se pode fugir de quem você é!

É, ele não podia. E ele sabia muito bem quem era. Não tinha as memórias, mas tinha a informação. Ele escolheu esquecer as mortes que ordenou. Escolheu esquecer tantas batalhas fúteis. Escolheu esquecer os seus "grandes" feitos. Escolheu esquecer sua covardia. Quem deixou para trás. Escolheu esquecer que ordenou que a elite de sua espécie, fosse arremessda milhares de anos no espaço, para uma existência que não correspondia a sua cultura, vida, e memória como espécie.

De que adiantaria sentir? Testemunhar novamente a ausência de seus filhos após os abandonar em campos de batalha que, em última instância, foram vitórias vazias? Sentir suas esposas definhando com o peso da perda espiritual causada pela dissolução de tudo que conheceçam a vida toda, enquanto ele, em vez de lhes apoiar, se debatia inutilmente contra um inimigo que varria inexoravelmente um universo?

É tudo tão novo. Tão verde. Tão vivo. Mas não teria como escapar de milhões de anos de remorsos. E pensando assim, deixou o corpo cair no que não era exatamente solo, para ser esmagado pelo que não eram exatamente anêmonas.

No dia seguinte, sua mãe estava novamente sentada em sua sala. Iria demorar alguns dias, e ela sabia que seu filho iria novamente sentir o estranho aroma do sabonete e olhar maravilhado por um instante, para esse novo mundo. Sabia que iriam discutir. Sabia que, como até agora, ele talvez escolhesse morrer a lembrar da sua vida. Ela tinha medo. Ela sofria. Mas ele herdou dela a teimosia que matou bilhões da sua espécie em desesperada resistência. Como toda boa mãe, ela não iria desistir de seu filho.

1 comment:

Eliana said...

Dessa vez, eu entendi. :P