June 20, 2021

Proxêmica


Estava atrasado. Precisava chegar na outra cidade o mais breve possível. Não. Os códigos para a ativação de defesa contra invasões alienígenas não estavam comigo, e nem eu carregava a fórmula da cura da Covid-19. Era uma maldita pressa natural, em um dia anormal. Pois em um dia normal, o maldito alarme teria me acordado.

Com o que não contava, foi com uma falta de luz. Desde que a Eletrobrás foi despedaçada, tudo piorou. Dependendo da região ou município, a infraestrutura ganha pouca atenção, e mesmo havendo apagões nas cidades grandes, no interior é pior, com períodos de incerteza a respeito do abastecimento. E assim, sem luz, o alarme que sempre carrego, não tocou na hora certa.

Ora, se meu carro não estivesse ainda no conserto, eu também não teria de passar esses dias em pequenos, miseráveis "hotéis" como aquele. E nem depender dos ônibus locais... Bem, suponho devia ficar feliz de empresas ainda aceitarem contratos nessas cidades.

E ali me vi, esperando um ônibus pouco depois de ter perdido o que devia ter pego, com pessoas sem máscara e alimentando cães de sua com suas próprias mãos, que iam lavar, sabe-se lá deus quando.

Um carro automático parou em frente a parada de ônibus e sem muito rodeio, o holo que estava no volante anunciou que iria nos levar a cidade mais próxima. O preço seria o mesmo da passagem de ônibus. Eu sei que não se pode confiar em IAs, mas fiquei tentado. Chequei minha arma e já ia dizer que aceitava, quando duas garotas se apressaram em entrar no carro, perguntando se podiam pagar valor de estudante e com a concordância da IA, se acomodaram atrás. Eu fiquei em dúvida. Holos deixam os pelos dos meus braços arrepiados, mas fui na frente. Tempo era precioso e eu havia acabado de ganhar um bocado.

As garotas estudavam Nova Jardinagem. Um tipo de "agronomia urbana" ou algo assim. Física, química, matemática era o que mais estudavam, elas disseram. O holo era daquele tipo que conversava muito. Já havia sido usado na cidade em outras tarefas, até que acabou nas mãos desse dono de uma frota de carros automáticos que arrendava a holos e motoristas humanos. "Nós, holos, somos muito confiáveis, vocês sabem, né?". Há quem caia nessa, mas eu sabia que holos podem ser reprogramados. Eu preferi continuar atento a estrada e ao holo.

Pelo menos eu tentei. Uma das garotas não usava máscara e falava sem parar. Sua voz era alta e aguda, parecendo tentar bater uma espécie de recorde mundial de lançamento de perdigotos. Instintivamente, eu me encolhia em direção contrária, mas se eu queria evitar uma contaminação, era de pouca valia. Ela resolveu que meu silêncio era interesse (pense!) e continuamente buscava minha atenção, tocando no meu ombro ou braço. Eu tentava pedir ajuda ao holo, com um olhar de puro desamparo, mas não surtiu qualquer efeito. Esse não teria passado num CAPTCHA.

Eu tentei manter a cabeça fria e suportar aquele martírio. Pelo menos a outra garota parecia educada e inteligente. Usava uma máscara, o que já era grande indicativo de ambos. Chequei os dados no meu pulsonet, ia chegar com tempo de sobra. E o holo não dirigia mal. Chequei pela milésima vez os dados que carregava, e verifiquei que tudo estava em ordem.

Eu não podia dizer que era divertido trabalhar para a Nova Abin, mas certamente era importante. Esses planos para a construção dos campos de retreinamento do Governo de 17-03 e os contratos que tinha para levar para cada uma dessas cidades, iam mudar o jogo de vez. Esses centros anti antifascistas iam livrar nosso país dos comunistas e isso seria ótimo. Já bastavam as mentiras que diziam sobre o avó do grande líder, sobre como ele nos levou ao maior desastre sanitário de nossa história! Malditas narrativas vermelhas!

A holo anunciou meu destino. Eu desceria primeiro. Que alívio, deixar para traz a Miss Perdigoto 2057. Nenhum Virgem Sagrado merece um encosto desses.

Como tinha tempo de sobra, não fui direto ao local da reunião. Em vez disso, fui fazer o check-in no "hotél" e já pensava que tipo de inseticida eu devia comprar para borrifar no quarto antes de dormir a noite. Mas, assim que abri a porta, senti o toque familiar no braço. Me virei, e assim que vi o que estava a minha frente, meu sangue gelou. Era a Rainha dos Perdigotos. Por um segundo, seu rosto piscou com a imagem de Lula, o Facínora e por um segundo e na minha visão um GIF de "PT PARA SEMPRE! MORTE AO GADO!" também surgiu, enquanto a agente comunista se dissolvia em uma nuvem de nanitas que voou em minha direção, me desintegrando. Sério, as pessoas e esses malditos robôs deviam respeitar mais o distanciamento físico.

[FIM DAS RECORDAÇÕES DA UNIDADE BIOLÓGICA 17-2783490239] 

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