Esse é o primeiro de antigos contos que estou revisitando e atualizando. Escrevi Happy Day originalmente em 96. Tentei re-escrever ele hoje sem fugir do sentimento original, mas dando mais coerência ao universo retratado. Happy Day foi o primeiro de uma série de contos retratando uma distopia, o Recife-Cyber-Lama (RCL). Na época, o RCL versava sobre a desumanização, violência, ausência de identidade social. Esse novo texto não deixa de tratar desses pontos, afinal, no Recife de hoje e de ontem, o que mudou de fato?
Happy Day (2007)
Acordei pela manhã com o alarme tocando, eram 6:34. O holo brilhava, vermelho e estéril sobre minha cabeça. Tateei tentando pelo controle. Não me atrevia a falar e espantar o resto o sono. Nâo o achei e tentei voltar a dormir. Esperei por dois minutos e nada, então resolvi tomar banho e me preparar para o trabalho.
O ar húmido da madrugada já chegava quente na sala. As chuvas contantes a noite eo calor forte de dia havia se tornado rotina há anos. Vi notícias sem sentido por meia hora. Dá para levara sério o noticiário? Desligo o jornal e o deixo pousado sobre o sofá. Fico deitado aproveitando um facho de luz vindo pela janela, pensando na vida, por fim me canso disto e me levanto. Tomo um banho rápido e frio, meu último recurso contra o sono esbravejante e mau agrilhonado, insistente em me carregar de volta para a cama.
Antes de sair, passo na porta do outro quarto. Narinha ainda dorme, minha filha querida, meu amor. A única força capaz de me erguer toda manhã. Pego o paletó, ajeito a gravata e vou ao trabalho.
Meu carro ronca suave, também sendo acordado de forma brusca, mas certamente em melhor forma que o dono. Rolo com ele para fora do edifício, sem falar com vizinhos ou o porteiro, gente chata, implicante e barulhenta. A rua está apinhada de carros, mas com um pouco de paciência, desço a rampa do prédio e me encaixo com precisão na fila-engarrafamento-piadadiáriadetrânsito.
Demoro, mas chego a avenida que me leva a empresa em que trabalho. Não se passam dez minutos e um vendedor de tamarindo irrompe a janela de um carro oferecendo seus frutos, o motorista, um tremendo imbecil, demonstrar a sua estupidez, parando o trânsito sem o mínimo respeito para comigo e os outros atrás dele. Ouço buzinas atrás de mim, holos arreganham bocas furiosas, sinais de alerta começam a piscar no carro do sujeito. Eu não buzino, sei que em Recife isso é puro desperdício. O vendedor também parece não se incomodar. Continua com sua venda e, sem pressa, zigue-zagueia pelos carros. Penso em avançar sobre ele quando passa a frente de meu carro, mas lembro que não há lava-a-jato deste ponto até o trabalho.
Quando passo ao lado dele, que já está pulando para a calçada, puxo minha escopeta de segurança e disparo em sua perna. Os projéteis de boracha e gelatina explodem ao contato e o impacto seguido pela queimação na perna vão deixar o filho da puta longe da rua por um bom tempo. Alguns buzinam concordando, outros olham assustados ou irritados com meu comportamento. Eu apenas continuo guiando, sei que este não vai mais atrapalhar o trânsito por horas.
Incrivelmente percorro mais 4km sem ninguém trancando o carro ou cortando pelo meio do trânsito.
Chego a Companhia, o holo verifica o carro e minha identidade e me deixa passar.
Eu pego minha pasta e entro no edifício, a recepcionista olha para mim e abaixa seu rosto logo em seguida, provavelmente lembrando o que lhe disse quinta passada. Pego o elevador vazio e vou ao quarto andar. O som de teclas não se ouvem no escritório. É uma pena, eu o achava reconfortante, um som que fazia o mundo girar. Pelo menos assim que eu pensava. Talvez meus pais e avós pensassem o mesmo sobre o som de máquinas elétricas ou o telégrafo.
O silêncio é opressivo, mas isso era de se esperar. Eu o contemplo todo dia. Agudo, longo. Cumprimento algumas pessoas com um menear da cabeça e entro em minha sala.
Meu holo pisca, verificando minha presença, pisca por alguns segundos e me entrega relatórios.
Perdi uma conta, pena. Vou preparar um e-bomb para eles. Minha ex-esposa me mandou outro mail, quer ainda saber como encontra a mim e minha filha. Como diabos ela burla meus filtros? Mando um e-bomb simples para ela e vejo o que há de novo na empresa...
Durante o resto da manhã as coisas ocorrem de maneira calma, trabalho em duas das contas e converso com 4 holos, todos muito prestativos e cuidadosos...
Hipócritas, uma chance e tentariam me matar, mandando um e-bomb ou assassino, o que quer que a moda da estação esteja ditando.
Um holo da explosão do e-bomb enviado interrompe meus afazeres por um momento. O som é belo mas miúdo. A empresa tem regras rígidas em relação ao som alto, alguns memos e foram enviados semana passada e já soube do desligamento permanente de alguns funcionários. Holos de sua terminação foram incluídos nos relatórios matinais. Vejo novamente o e-bomb e me acalmo um pouco, compensando o ex-vendedor de tamarindo.
Almoço no restaurante da companhia, onde os pratos são satisfatórios e o preço é quase justo. Sento com outros Demiurgos e conversamos um pouco sobre o que cada um anda fazendo.
Canso-me da conversa e deixo o prato pela metade. Lentamente vou ao caixa, pago e faço ao holo uma reclamação sobre a qualidade e preço do alto do almoço. Sei que isso vai me dar pontos com a divisão de RH, sempre insistentes em "maior partipação dos funcionários no sócio-ambiente da companhia".
O holo não gostou da minha desistência a meia distância de terminar o prato, eu o mando a merda. Ele se irrita, e aumentan o preço de meus almoços em 200%. Quebro o holobloco e saio de volta a minha sala, sob uma chuva de vaias, gritos e pedaços de comida. O elevador limpa minha roupa quando aperto a tecla do andar.
Um tiro abala o escritório por alguns segundos após a porta do elevador abrir, me deixando desnorteado por alguns segundos. Verifico que o tiro não se dirigiu a mim, nem me atingiu e sigo para minha sala. A garota que atirou chora um pouco e limpa o sangue que respingou em sua roupa com delicadeza cuidadosa. O rapaz e ela estavam namorando a alguns dias, mas quem sabe o que se passa na cabeça dos jovens de hoje? Logo funcionários vêm limpar a bagunça, recolher o corpo, enviar a carta de demissão a família (com data-horário prévio a sua morte e assinatura digital do rapaz devidamente forjada).
Falo com mais uns dois holos quando chego a minha sala, um deles me comunica o débito da destruição do holo dos restaurante. Eu nem quero pensar o quanto é, não importa, eles sempre descontam algo, pelo menos desta vez existe alguma razão.
Termino o trabalho e vou novamente pegar o elevador. Um casal conversando, bloqueia a porta e peço para saírem do caminho. Um dos rapazes me olha com raiva e me manda ir para aonde não quero. Dependendo de quem ouça, essa bravata pode lhe dar pontos com a diretoria. Pela cor da gravata noto que é um funcionário recém-contratado. Não me comovo. Puxo uma lámina de vidro e corto sua garganta com a precisão de um costume diário. Seu namorado reage puxando um lança-agulhas, uso minha pasta para bloquear e desarmá-lo empurrando ele para o chão. Em segundos ele sangra ao lado do amigo. Ótimo, é advertido que não se deve trazer não-funcionários para dentro da empresa.
Pego o carro e vou tentando achar um lugar no trânsito.
Um carro me tranca e bato nele, ouço a maquina interna se refazendo, o que não ocorre com o carro de segunda de meu algoz, que para no acostamento. Menos um idiota, eu penso, desejando uma folga de pelo menos alguns minutos.
Chegando em casa, vejo um vizinho me esperando na porta. Eu o convido para entrar e tomarmos café enquanto conversamos sobre o uso de minha vaga no estacionamento. Ele me ofende, usa um verificador de venenos em sua bebida. Irritado, transpasso sua garganta com a lâmina do trabalho. Droga, penso. Tenho que limpar a sala antes de Narinha voltar da aula.
Chamo o zelador. Ele manda o corpo para a reciclagem e envia um holo de condolências. Sei que o holo irá também questionar a família se poderá permanecer no apartamento com seus vencimentos atuais.
Narinha chega, linda e inocente, jantamos e ela me conta o seu dia na escola. Eu amo minha filha. Leio para ela até que durma. Vou para minha cama. Leio um pouco, mas me canso logo e desligo o livro.
É, mas um dia na Veneza brasileira chega ao fim.
Boa noite.
(escrito por Haroudo Xavier em 20 de maio de 2007)
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