March 08, 2012

É Virose!



Liberdade?

Pior que apodrecer na cadeia, é saber que ao sair, não há lugar para onde ir.
Quatro anos e meio e me deixam sair. O holo me olha estranho, parecendo desconfiar de minhas intenções.
Mas me deixa passar sem mais questionamentos, me dando por fim uma arma.

Ninguém me recebe do lado de fora. Estou novamente, sozinho no mundo.
Família, amigos, amores, que me contavam entre os seus, agora ignoram minha existência.
É fácil ignorar alguém. Sempre foi. Hoje, em que o contato pessoal é um elemento as vezes de intimidade, mais ainda.

Eu volto andando para a cidade, deixando para trás a prisão.
O prédio de três andares não comporta quase ninguém.
E o local onde eu era mantido prisioneiro, não deverá ser ocupado tão cedo.

Crime?

Chego ao hospital pontualmente, na hora marcada pelo holo da recepção.
Não há filas. Essas, só nos cemitérios e crematórios.
Meus olhos ardem de febre. Mal consigo preencher a ficha, que o holo exige que seja feito de próprio punho.

O médico chega 3 horas depois. Já vomitei várias vezes.
Para cada vez que vomitei ou precisei ir ao banheiro, meus créditos foram reduzidos pelo holo.
O médico sorri, me pede para esperar e entra no consultório.

Sou atendido duas horas depois. O médico relaxa em sua poltrona e relutante, larga o telemóvel.
Ele me olha por dois segundos, diz algo, e volta ao celular.

- O quê?
- Peraí, Sandra, um segundo.
- É virose.
- Estou doente assim faz 5 dias!
- É virose. Vá pra casa, descanse, se não melhorar, me procure em 3 dias. Me desculpe, mas estou no telefone.
- É virose? É virose?? E isso aqui, que porra é, doutor? Virose também?

Ele tenta mudar a função do telemóvel e atirar em mim, mas dou dois tiros em seu peito.
- Filho da puta.
E dou um tiro na sua cabeça.

Cadeia?

Fui preso e processado por "uso de arma em estabelecimento médico". Eu estava em meu direito, concluíram os holos.
A mãe do médico, porém, me processou pelo "filho da puta".
Fui enviado para a cadeia, pena de 10 anos.

O pior, é a solidão. Duas pessoas dividiam a cela, mas suas penas eram de outra natureza e só apareciam para dormir.
Passava o tempo então, lendo e escrevendo. O estado tem os direitos do que produzo, mas soube que vendia bem.
Alguns holos simulavam companhias, mas eram modelos antigos, instáveis. Apareciam e desapareciam sem aviso.

Não é difícil escapar da cadeia. Muitos se suicidam assim.
Basta passar pelo portão e ir andando. Mas todos os holos do estado podem usar força letal.
Claro, ultrapassou a fronteira e torna-se é um homem livre. Porém nenhum carro irá funcionar para você, nenhuma arma, nada.

Eu fiquei. Eu tinha negócios inacabados.
O pior era adoecer. O holos não entram no prédio. E ninguém se atreve e falar com o outro.
Alguns prisioneiros morrem assim. Incapazes de cuidar de si mesmo.
Nem sempre os medicamentos que pedimos chegam, e nem sempre sabemos do que estamos doentes.
As vezes as pessoas que dividem a cela, nos rouba para vender fora.
O pior era adoecer. Quando nos falta, definitivamente, as pessoas que nos cercam.

Amados?

Chego a cidade durante a noite. Meu corpo todo dói.
Não há como repor os anos. Mas queria falar com eles.
Falar com cada um que me ignorou.

Os holos que não respondiam, a visitas nunca recebidas.
Quem está fora pode entrar e sair da cadeia quando quer.
Mas eu não tinha nada para as oferecer, aparentemente.

Eu entro no apartamento que sustentei por tanto tempo.
Eles me ignoram, como meus companheiros de cela. Meus filhos, um deles um holo do menino que perdemos anos trás, me ignora.
A mulher que amava insiste que eu saia.

Ligo para meu irmão. Este me oferece uma carona, mas só isso.
Uma última viagem.
Subo na Torre de Eutanásia e salto.
Livre, afinal.


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