April 03, 2012
A Alface
Beatriz chegou de uma terra distante. Ela fez a viagem apenas por convite de Marta, que prometera uma bolsa caso fizesse parte de seu projeto. Um mapeamento de costumes indígenas que conecta sua religião com culinária. Não era mais viável ou interessante que qualquer outro projeto. Mesmo vindo de tão distante (está bem, nem tanto: era da cidade vizinha), valia a pena por conta da bolsa.
O prédio onde o laboratório estava instalado era alto, escuro e ficava numa área perigosa da cidade. Não tinha boa cobertura de celular. Como parte da Universidade, muita gente circulava, mas não tornava o lugar menos esquisito. Enfim, a bolsa era excelente, mas parecia sim uma armadilha de filme de horror...
Éramos cinco. A profa Marta, eu, e mais três pesquisadores.
Um deles era Griselda. Magra, verde e com uma expressão de felicidade cansada.
Longe de uma boa impressão, Griselda passava algo de estranho. Era vegetariana e nas horas de almoço, se recusava a sair conosco para almoçar. "Trouxe minha marmita", dizia, e comia só, no próprio laboratório.
Minha rotina era cansativa. Viajar todos os dias para casa e para Recife, trabalhar quase 12 horas com transcrições, traduções...
Mas a equipe do trabalho tornavam as coisas mais tranquilas.
Havia um relaxamento, uma amizade, que tornava as relações íntimas e sem estresse, rapidamente. Em poucos dias, já tínhamos "piadas internas", e todos já buscavam estar presentes no happy hour.
Menos Griselda, que já havíamos apelidado de "A Alface".
Acho que foi aí que começaram a surgir mais dos cartazes que enchiam agora o campus.
Sabe, eu tinha esse preconceito de que, gente adulta desaparecida, ou faz isso porque quer, ou porque tem problemas de saúde mental.
Então começaram a surgir os cartazes com universitários. Podiam até se enquadrar no esquema "fez isso porque quer", mas havia gente desaparecendo quase que diariamente.
Toda vez que via um cartaz, me dava um arrepio, e eu não sou dado a essas frecuras.
Todo o grupo parecia nervoso com a onda de desaparecimentos, e a Globo fazendo reportagem no local, no dia 15 de março, em nada melhorou os ânimos. Rogério, o "cara do café" parecia o mais abalado. Era o mais jovem e mais animado do grupo, mas andava retraído nos últimos dias. Já estava deprimido por ter perdido o namorado, daí não imaginamos que talvez ele soubesse demais...
Preocupada, dei um soco no ombro dele, que, de macho par macho, quer dizer: "E aí, brother, que merda é que está havendo, quer conversar? Fala aí, que é que manda?". Talvez porque eu seja mulher, ele não entendeu. E me olhou ainda mais nervoso e saiu mais cedo, muito, muito nervoso.
Nós nunca mais vimos Rogério, quer dizer, mais ou menos.
Nesse dia fiquei trabalhando até tarde e fui no banheiro. Estava lá, tranquila, lendo um "Aqui no Campus", ou algo assim, e ouço uma discussão. Me limpei e ajeitei a saia apressadamente e chego próxima a porta.
Era a voz de Rogério.
- Nãããoooo! Ai!
É, eu sei, não havia muito diálogo mesmo.
Eu olhei pela fechadura e Beatriz, a meio kilo, a vegetariana verde, mordia, naco a naco, Rogério. Parecia um animal, arrancando pedaços de carne com os dentes e os engolindo com movimentos rápidos de cabeça e pescoço.
E vomitava logo depois. Bulímica! A Alface, uma canibal bulímica! Eu tinha de fofocar isso depois!
Mas eu tinha antes de sobreviver...e ela se virou para o banheiro...
- Caraleo...
Eu disse baixinho.
Claro, aquela porra ouviu.
Ela largou o que restava de Rogério, algo absolutamente incapaz de preparar café, e atacou a porta.
Beatriz não devia ter mais de 40 kilos, e atingiu a porta como se fosse um rinoceronte. A coisa ficou séria e teria me mijado se já tivesse feito isso.
Ela bateu na porta mais duas vezes, mas não era mais gente, era um bicho, ela não esperava derrubar a porta par entrar e assim que criou um espaço, meteu o braço adentro.
Aquele braço fino, de pele de cor estranha, um branco que cintilava kleve com cor verde que os vegetarianos parecem adquirir, movia-se como um animal tentando me pegar.
Veja, eu estava DESESPERADA. Só aí me dei conta que estava gritando feito uma louca, pedindo socorro, pelo amor de Deus e o escambau.
Quando ela agarrou minha camisa polo, só pensei "fudeu!" e comecei a lutar feito uma louco. Batia com a porta no braço dela que devia ter se partido no primeiro impacto, mas nada. A bicha era a gota mesmo.
Ela me rasgava o peito com as unhas e eu prensava e batia a porta contra seu braço.
!!SPLORCH!!
É isso mesmo, "splorch". O braço dela fez "splorch" e estava em minhas mãos. Ela urrou de dor e jogou de novo seu corpo contra a porta, me derrubando e a porta.
Entra ela e eu, só havia o braço, que pintava o banheiro de sangue, em esguichos vermelhos e verdes.
Lutei contra o vômito e comecei a bater na Alface. Com o próprio braço dela. Lembrei de Beowulf enquanto batia em Griselda, feito uma louca.
Eu matei Griselda.
O Meu Deus! EU MATEI GRISELDA!
Pensava eu, feito uma louca, quando ouvi passos e uma voz familar:
- Meu anjo, já terminou? Podemos limpar?
Era Marta.
Tá cumcaraleo. Floodeu.
Eu saio correndo pro outro lado, e esbarro, em nada mais, nada menos, que uma parede. Burra cega. E desmaio.
Acordo sem meus óculos. Sendo arrastada. Aquele não foi meu dia. Nem de Rogério.
E Marta, a minha querida, me joga num divã que tem em sua sala.
Ela ainda pensa que estou desacordada. "haha", pensei.
Quando vejo ela puxar uma seringa cheia de um líquido que parecia saído de Re-Animator, me levanto e ataco ela. Claro, feito uma louca.
Rolamos no chão, catfight special edition, eu e ela, ela e eu, mas ela nem se compara a Alface e enfim, Beatriz, a heroína, triunfa. Mas quebrei minha mão na cara dela.
Os dias seguintes foram uma zona.
Lobão escreveu uma música pra mim, Marília Gabrila me entrevistou, sensacional.
Mas o tempo passa.
Hoje, 50 anos depois, já aposentada mas trabalhando ainda na universidade, vejo o cartaz de um jovem desaparecido.
Ele é idêntico aos 5 outros cartazes. Algo anda pelos corredores, algo faminto, impuro, de sangue, talvez, mais colorido que o nosso. Eu, Beatriz, matadora de monstros, rondo então os prédios para uma última luta.
Como uma louca.
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