May 19, 2012

Crepitar


"Existe fome no mundo.
Uma fome que ameaça devorar cada um de nós.
Fome, não de comida. De vida humana.
Se há céu e inferno, já não sei.
Mas me deparei, um dia, com a Fome."
Pe. Pôncio Cinares

Recife, 2010.

Chovia. Nada se via nessa cidade que não a chuva que vinha, se não em torrente, em pancada bruta e desleal.
Encharcado, corria entre poças de lama para chegar logo a casa da menina. Um padre.
A mãe. Encamada e quase morta, ou assim me disseram a criança, queimava e falava com língua estranha.
Pensou a criança em, antes de chamar o SAMU, procurar um padre, e assim ele foi. Exorcista.

Pôncio. Em tempos de tanta discussão sobre a fé e o sentido da igreja, da luta por fiéis e dízimos, ele despontava como uma esperança renovada. Quantos dentre os jovens ainda bucavam tornar-se um padre? Poucos.

Amarela. A porta de cor incomum, parecia roubada de algum outro lugar, destacando-se do mundo barroso, marrom chuvoso. Quando abriu, sentiu o cheiro, não de enxofre, mas de leite de rosas, incensando a casa pequena e pobre. Escura.

Grito. Feminino, estridente, triste, que cortava que ungia que ligava, um som oco e puro e horroroso. Entro, já exausto, casa adentro, mal descansei na porta, já me vi correndo para o quarto, impulsionado e estremecendo, em punho, a bíblia e cruz. Fé.

Fogo. Enchia o quarto, vindo da boca e olhos da mulher, que lambia o mundo em labaredas,consagrando a lama e pobreza para um novo deus. A dor do queimar vinha antes chama, da pele de lagarto que se fazia na cama, tal qual uma salamandra que se erguia em fúria. Medo.

Cantiga. Que vinha do meio daquela boca descarnada, que trocava pele por escamas, que enchia o lugar de fumaça, mas de seu espírito imundo que do queimar. Uma história de dor e de ódio, uma cobranças de dívidas plenas, que remontam traições índias, antes das naus e extermínios, aqui o pecado da inveja já morava. Vingança.

Serpente. Se erguia da cama e da boca e do corpo, da mulher que jazia morta e queimada, em cinzas. A criança chorava na sala e eu, paralisado e morto só olhava, hipnotizado pela cobra imensa e bela e horrível em sua fome e desejo devorante que cobiçava mundo como a mim em sua insasiável ganância de ser a chama que tudo encobre. Majestosa.

Explosão. De raiva, quebrando as paredees enfraquecidas da casa e fugindo, na chuva que evaporava em seu toque vermelho. A lama secava no seu correr, um rastejar voador, de dor que causava na terra, do ar que lhe dava passagem, daquilo que pecava contra a realidade, de um exorcismo oco de algo antes moldado, antes talvez, até mesmo do que o mundo. Imortal.

Ajoelhado. Chorei e vi a criança, correndo para o corpo de sua mãe que lhe queimou as mãos e lhe provou o grito. Salvou-me do torpor de vida, e carreguei-a nos braços para chuva, na busca de limpar a mim e ela de horrores, tentar afogar minhas dúvidas, resgatar a fé, purificar meus olhos. Em vão.

Recife, ainda 2010.

- A criança diz a verdade.
Fala o homem, cercado de gatos.
- Três de quatro.
- Quatro o quê?
Pergunto eu, vestindo batina que descreio.
- Não sei lhe dizer, padre. Mas agradeço sua ajuda e confiança.
Quem fala agora é o rapaz. "Ele está morto", me cochichou a menina.
Eu não confio neles. Em ninguém.
Abro a porta e os deixo ir.
A criança fica comigo.
Amanhã viajamos para outra cidade, onde moram seus tios.
Para longe da chuva.
Para longe do fogo.

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