May 22, 2012
Porcentagens
O voo foi cansativo. A mulher ao meu lado, com medo de voar, não fechava a boca na tentativa de escapar da ansiedade de uma morte imaginada.
O aeroporto, imenso, pois na minha idade já testemunheie como eles cresceram de locais simpáticos onde se saia para passear aos domingos até o ponto de monstruosos shopping centers, onde, não entendo, se passeia hoje aos domingos.
Talvez o anacronismo me atinja como doença, pois não sofro de particular nostalgia. O mundo, é sim, mais confortável e simples, mesmo que em alguns casos, tenha tornado-se mais complexo.
Talvez, só dez por cento mais.
Quem sabe?
Quem calcula essas coisas afinal?
Na lanchonete, já fora do desastroporto, agoniaporto, ou o que lhe valha, peço um sanduíche.
Insisto na ausência de alface. Não confio em alfaces. Nunca me olham, olho a olho. Não confio.
Claro, o sanduíche chega com alface. Porque não, certo? Como assim mesmo.
Com fome, sobrevivente de um longo voo, irritado, não sei o que pode piorar.
Será que pensei rápido demais?
A garçonete bate no meu cotovelo e meu café se derrama, molhando alface e calças em diferentes porcentagens.
Eu seguro minha explosão. Foi um acidente.
Ela pede desculpas, mas olha para calça e não segura um rápido riso.
Já, isso, não foi.
Peço a conta.
Não pago os dez por cento cobrados.
Míseros 10 por cento.
Será que o dono verifica quando clientes não pagam essa porcentagem? Será que verifica os motivos?
Penso na pobre garçonete que está lá, gastando mais que essa pequena percentagem de seu dia, quem sabe, de sua vida.
Culpa. Porém, me justifico, afinal, fui a vítima. Mesmo tendo exercido uma vaga e baixa vingança, fui a vítima.
Fui? Qual chance dela ter tido educação que lhe desse o decoro de não rir de alguém que parece ter urinado em um caro terno?
Dez por cento?
Menos?
Pago e vou.
Pra onde?
Pro hotel, um bar, casa de amigos?
Paulo e Michele sabiam que eu estava vindo, mas não combinamos nada.
Bares na cidade? Não faltam.
Não estou cansado o sufciente para dormir, mas é bom fazer o check in de toda forma.
O Táxi é ligeiramente mais caro do que estou acostumado.
Já lhe viciei a se perguntar se paguei dez por cento a mais?
Espero que não.
O hotel não é o melhor nem o pior da cidade.
Confortável, moderno, com gente demais, acho.
Me apresso em sair e ir a um bar. Qualquer bar.
Me arrependo. A música é alta e ruim.
O bar seguinte é melhor. Sento. Bebo.
Há um resto de cerveja que se recusa a ir embora, quente, não desce.
A vodka surge e a razão escapa.
Saio pela porta e ando a esmo. A cidade, mais escura, mais fria, mais dura, me agrada.
A deliciosa liberdade de um lugar estranho, sempre me encantou.
Ainda cheiro a café, mesmo após a troca de roupa.
E agora, vodka.
Mas o que estou fazendo aqui?
É fuga, é vingança, é solidão?
Nem eu sei.
Meio bêbado, chego na casa de Luciana.
Carlos atende meu bater de palmas.
Ele está mais velho. Todos estão. Eu, não.
Ou quase, não.
Ele me olha desconfiado. Pergunta meu nome, espera uma confirmação.
Pago sua espera com um sorriso.
Ele me aperta a mão.
Duro e frio. Será efeito da cidade?
Me pede silêncio. Camila e Letícia estão dormindo.
Me pergunta sobre a vodka.
Lhe respondo que ela está bem, obrigado.
Me dá um olhar duro e frio.
Eu retribuo com o sorriso jocoso, e ele sabe, não tenho medo dele.
Tenho medo da casa.
Tenho medo de dez por cento.
Lu, preocupada, dividia a atenção entre a porta e um filme na TV.
Quando me vê, para de respirar um segundo.
Será que me reconhece?
Eu sei que não. Eu era outro.
A viagem me transformou.
Ela envelheceu. Eu? Eu não.
Eu me aproximo, não falo nada.
Havia dez por cento de change de que nunca voltasse.
É muito experimental. Foi o que disseram. Ou algo assim.
Fui. Voltei. Eu, pária. Na tv, o filme é sobre mim e sobre a viagem.
Eu ignoro os pormenores. Menores, todos eles. Quem ficou, quem me criticou, quem vaiou o voo.
E voltei. buscando os pormenores do meu passado, que vi desarranjados no futuro.
Posso mudar algo? Não, não de verdade. Não muito.
Só soube, lá, o que havia, aqui.
Ela, calada, pega minha mão.
Sinto as lágrimas em nossas mãos.
São minhas.
Minha irmã me olha, não sorri. Ela sabe, como sempre soube, nesse espelho que sou eu e ela, unidos sempre, separados pelo tempo e viagem.
E só eu tenho o que ela precisa.
E mesmo assim, quais as chances, doutores? Quais as chances?
Dez. Dez por cento.
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