June 09, 2012

Forno


Ela ouviu tocarem na porta.
Levantou-se, colocando o chinelo e deslizando em meio despertar para a sala.
E olhou pela janela.
Ainda era noite.
Quem seria?
Foi até o armário do marido, já falecido, e pegou o revólver.
Na sala, ouviu o som na cozinha.
Teve medo.
Ela tinha certeza. Havia algo na cozinha.
Já tinha deixado veneno para ratos, mas nada havia morrido.
Borrifou a área com inseticida, mas nada havia morrido.
Pensou em adquirir um gato ou um cão.
De fato, uma prima lhe cedeu um gato, ela criava pelo menos duas dúzias.
Mas o gato, de alguma forma, fugiru de sua casa ainda na mesma noite.
E toda madrugada, ouvia sons na cozinha.
E agora, a porta.
Ela odiava olho mágico.
Sempre parecia que alguém ia lhe colocar uma arma pelo outro lado e lhe matar, como vira em filmes.
Tirou os chinelos para andar mais silenciosamente.
E viu o forno aberto.
Mas ela não usou o forno.
Devagar, foi e fechou a portinha.
Voltou para a sala.
Tocaram novamente na porta.
Ora, quem poderia ser?
Ela olha para o relógiio na parede da cozinha.
O dia ainda vai demorar para renascer.
E se aproxima da porta. Olha pelo olho mágico.
Nada.
Assustada, vai verificando as janelas, mas todas estão bem.
Cansada, volta para o quarto.
Pensa na neta, Carla, que vai visitar pela manhã.
A menina vive com o pai. Seu genro.
Sua filha, que sofria de depressão, matou-se. Ninguém havia se recuperado.
Dormir então, e esperar que os fantasmas dessa madrugada seguissem o mesmo curso.
E na cama que lhe aguarda, parecia já lhe esperar o sono, que a captura, assim que a causa pousa.

Ele destrava a porta e a abre com cuidado.
A velha foi dormir.
Ouviu seus passos desajeitados pela idade.
Arrastar de chinelos, ou não, o tempo lhe destruiu o silêncio de um caminhar tranquilo.
E ele está armado.
Não pretende ferir a velha, mas, quem sabe?
Ele já a viu com jóia, que juram, não são bijuterias.
A máscara incomoda o rosto, mas é melhor assim.
A velha lhe conhece.
E ele já conhece sua casa.
Já lhe carregou a compras.
Já olhou para a sala com saliva a pingar.
Já lhe arrumou os produtos na geladeira, enquanto a velha, alegremente, conversava.
Não vai poder levar muita coisa hoje, mas levando as jóias, que se primo irá comprar, basta.
Um dia, a miséria cansa.
Não teve muito o que planejar. Nem precisava.
A fechadura ele já conhecia, já fez muitas chaves antes.
Só faltava coragem.
Ela veio do fundo do copo, lhe colocou o braço por seus ombros e cochichou: "bora hoje?"
Obediente, ele foi.
Passou em casa, pegou algumas ferramentas.
Foi a casa da velha.
Pulou sem muro baixo, depois de ver que ninguém via.
E aqui está ele, na sala.
Ele deixa a maleta de ferramentas no chão da sala e pega o revólver.
E escuta o barulho.
Tem algo na cozinha.
A velha tem cachorro? Gato? Que ele saiba, não.
Será que tem algo pra comer? Ele lembra da geladeira bem recheada, dos chocolates que ela compra e guarda lá.
Ele vê a porta do forno aberta, mas não mexe nela.
Se vira e abre a geladeira.

Clara morreu na escuridão.
Seu método é irrelevante, seu resultado, destruidor.
Em corpo, espírito e consequência.
Sua alma foi tão grosseiramente rasgada, como jogada numa tempestade.
Se agarrou onde pode.
Nada havia na sua casa nova onde segurar-se.
E lembrando de lar, pensou na infância.
De suaa mãe.
Onde escondia-se de seu pai, quando, com raiva, bêbado, vinha correndo atrás dela com cinto em punho.
O fogão.
O forno.
E lá fez santuário.
Mas sentiu fome.
Começou pelas formigas.
Um dia, viu uma barata.
Teve até um rato.
Enfim, um gato.
E ela continuava com fome.
Achava que ouvia a voz de sua mãe, mas agora, nem lebrava mais onde estava.
Sentia fome, vivia no escuro.
Como um troll que vive embaixo de uma ponte, alimentava-se dos incautos.
E a fome, a cada dia, crescia.
Os osso do gato ainda chupava, estalando eles com carinho.
Da carne, nada sobrava. Nunca. A fome consumia como fogo, rápido, intenso, de dobrar metal e vontade.
E ela sente o homem.
E se esgueira, de dentro do forno.
Ele olha a geladeira.
Mas quem tem fome, é ela.

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