June 11, 2012
Mepot Deropid
- O que foi isso???
- Ela mandou o povo calar a boca.
- Que exagero.
- Será? Eu acho que estavam fazendo muito barulho mesmo.
- Raquel, eu ainda acho um exagero.
- Tá. Deixa eles começarem de novo.
- São crianças...
- De bigode?
- Sim. Nem tudo é cronológico. Você devia saber disso.
- Daniel, tu é muito chato. Como a gente se tornou amigo mesmo?
A mulher agora se virou para eles e disse num bravo sussuro: "Vocês também? Podem calar a boca, por favor?".
- Desculpe.
- É, desculpe.
Os dois saem do debate, ainda em silêncio. Atravessam a rua e olham o prédio, da parada de ônibus onde esperam.
- Notou?
- Os slides, que foram horríveis?
- Não, não. As pessoas.
- Não, nem.
- Ninguém da turma.
- E isso é ruim porque...
- Você não se decepciona, não liga mesmo para eles?
- Eles ligam para a gente, Daniel?
- Está bem, não discutimos mais.
- Ótimo.
O ônibus deles chega. Pagam, sentam no fundo. Ela pega um aparelho e começa a escutar música. Ele olha para a rua, pela janela. Começa a cair uma chuva leve.
- Eu me sinto só. É isso.
- Eu não estou aqui com você?
- Quero dizer...sinto falta de outro tipo de companhia.
- Sexual? Não posso lhe ajudar com isso.
- Não, não...humana.
- Sei. Bem, também não posso lhe ajudar com isso.
Ele olha para as mãos durante o resto da viagem. Pode ler toda sua história nelas. Imagens de sua memória desfilam por sua palma, e pequenos indicadores e controles, movem-se ao movimento sutil de seus dedos.
Ele lembra desse ano. Ele era uma criança. Não muito mais novo que os que estavam conversando na platéia.
Seu pai deixou o debate e foi pra casa. Jantaram juntos, sem saber que era a última vez que se veriam. Seu pai viaja no dia seguinte para a Suiça.
Daniel fica tentado, mas anos de treino o impedem de fazer algo que vá se arrepender. Não é medo, é respeito. O mundo não muda quando se muda o passado, porque não há passado. Não existem viagens no tempo. O universo não guarda um registro de cada coisa que fizemos, como um garoto guarda um caderno, no qual pode apagar ou reescrever suas memórias. Ele está numa sombra apenas. O que ele fizer, pode sim, afetar profundamente esta realidade, mas não a sua.
O ônibus chega na parada e descem. A chuva, ele sabe, incomoda Raquel. Ela odeia umidade.
O apartamento é pequeno. Um dos vários espalhados na cidade, produto de uma rede de tráfego constante entre a realidade e este eco. Eco-92378-Viv. O quinto que ele visita, parte de seu programa de estudo. Ele espera que seja o último.
Ele deita na única cama do aposento e vê Raquel se desligar, as esferas, quase que invisíveis a olho nu, se aglomeram num cubo fissurado, de superfície irregular. Ela ainda pode ouvir Daniel, monitorar seus batimentos, mas não há o conforto de ver alguém, mesmo um holo, tão longe de casa.
Ele sente falta do seu Recife. O barulho de tiros na madrugada, a confusão incessante do trânsito, a tensão de ter seu apartamento invadido, a raiva feminina, vingativa e constante lembrança de seu poder. Essa paz o incomoda. Quase ninguém anda armado, as pessoas não se ofendem de forma constante e se o fazem, evitam o conflito. É tudo tão sorrateiramente contido. Há uma fúria logo abaixo da superfície, algo prester a estourar, mas a ação, ele notou, só se dá quando se faz em bando, de forma covarde. Não é um mundo de leões, mas de hienas. Será que um dia esse eco será como o seu mundo? Ele não sabe, mas duvida. Porém, a dúvida lhe gera curiosidade. Ele gostaria de saber, apesar de odiar essas viagens.
E, afinal, porque eles não começaram a desenvolver pesquisas sobre ecos. Essa é sua prova final. Entender a divergência nessa realidade, que impede que este mundo envie pessoas aos outros ecos de si mesmo. É uma preocupação acadêmica, claro. Esse mundo enviará gente para seu mundo, pois é um eco. Só poderá enviar gente para eus próprios ecos. Não há perigo, as realidades são sim, absolutamente inofensivas, para o mundo de onde o eco se origina.
Ele dorme pensando nisso, pensando em seu pai, com quem irá conversar amanhã.
O dia seguinte começa e, de acordo com suas memórias, termina com chuva.
Seu pai sai cedo para o aeroporto. Ele já tem passagem comprada. O plano é viajarem juntos e, no avião, entender o que deu errado.
Mas o voo atrasa. Seu pai não viaja. Ficam ambos no aeroporto, um em frente ao outro. Daniel desiste, levanta-se e vai sentar a seu lado.
- Olá.
- Sim?
- Só buscando um pouco de companhia. Notei que o senhor também vai pegar o mesmo voo.
- Sim, sim.
Ele olha para o documento em francês, olha para Daniel, olha novamente para Daniel e decide colocar a revista de lado.
- Você parece muito com meu filho. Desculpe dizer.
- Sério?
- Sério, você é da família Mepot?
- Não, não. Meu nome é Renato Deropid. Minha família é russa.
Ele odeia mentir e sabe que não nunca convenceu seu pai quando o fez.
Mas o deixou curioso.
- O que vai fazer na Suiça, Renato? Já esteve fora?
- Não. É a primeira vez. Estou procurando trabalho.
- Na Suiça?
Seu pai dá um franco sorriso de pura descrença.
- Sim, sim. Estou trabalhando com gravitons.
- Gravitons?
- Sim. E um de meus artigos chamou a atenção de outros pesquisadores. Talvez eu consiga trabalho por lá.
- Gravitons?
- Sim.
O sorriso de Daniel é cínico, um ataque indisfarcável.
- Você me conhece?
- Não.
- Meu nome é Hamilton Mepot. Acho que trabalhamos no mesmo campo?
- Verdade?
- Sim, sim...isso é tão estranho.
- Está se perguntando como não cruzamos antes um com o outro?
- Exato. E mais: como você tem produzido. Não tenho conseguido avançar com minhas próprias pesquisas.
"Então, chegamos ao ponto.", pensa Daniel. - Qual motivo, professor?
- Esse mesmo. Sou professor. Professor demais para pesquisar, aparentemente, e minha pesquisa é ainda tão teórica que não consegui fundos para ela. Ela é, e me envergonho disso, incipiente.
Agora Daniel entende. Em 2012 a pesquisa de seu pai já estava em pleno avanço. Não só mapearam os gravitons, como já utilizavam de forma prática.
Tudo, por ridículo que lhe parecia, se resumia ao ócio.
- Se tivesse trabalhado menos o senhor chegaria a um resultado melhor na sua pesquisa? É isso que está me dizendo?
- Sim. Pode rir, mas é isso mesmo.
- Obrigado.
- Pelas risadas?
- Nâo. Por me fazer entender tantas coisas em tão pouco tempo.
- De nada, acho.
- Posso lhe dar um abraço?
- Um abraço?
- Sim. O senhor, por estranho que possa lhe parecer, me lembra meu pai.
Eles se abraçam. Daniel finge ir ao banheiro e vai embora. Abandonando seu pai a própria sorte.
Afinal, nada mudaria.
Mas vai lembrar do abraço.
E olha para a tempestade que vem chegando.
Raquel se aproxima e lhe dá o braço.
- Vamos?
- Sim.
- Está bem, Daniel?
- Não.
- Adianta ficar assim?
- É minha terapeuta agora?
- Não. Não ganho tanto assim.
Ele sorri.
- Obrigado, Raquel.
- Pelo quê, exatamente?
- Por você. Vamos.
Eles entram no banheiro e o holo perde a coesão.
Raquel lhe abraça.
Diferente do abraço que recebeu de seu falso pai, este lhe formiga a pele.
As esferas que a formam flutuam a sua volta.
Logo, ele flutua.
As esferas o cercam totalmente.
Mas ele ainda tem tempo de ouvir a chamada para o voo.
De imaginar o avião sofrendo danos com a tempestade.
Seu pai, morrendo na queda.
Ele pode avisá-lo.
Não iria mudar sua realidade. Mas podia avisá-lo.
Mas ele nunca faz isso.
Ele nunca diz que o ama.
Ele só expressa assim, a vingança absurda pelo abandono.
Deixando que o homem que não é seu pai, morra, punido por algo que não teve controle, nem no real, nem em nenhum dos ecos.
Mas é assim no mundo onde ele veio. No Recife onde a menor ofensa é responda com força pelo menos igual, onde alguém sempre tem de pagar.
E sua ferida é profunda e a dívida, que não pode cobrar da tempestade, também.
E ele some. Deixando a si esperando a notícia, orfão de uma realidade que o fizesse entender. Não é respostas para as vítimas do destino. Resta sempre uma questão, vazia, inconsolável. Sempre.
Por quê?
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