June 05, 2012

Interlúdio, Noite dos Defuntos


O zumbi olha a lista de compras, incrédulo.
"Quatro dúzias de coca? Esse cara acha que o mundo vai acabar?", pensa ele, mas obedece.
Ele odeia filas.
"E pensar que fui desenterrado pra isso..."
Ele reclama em pensamento o que não consegue dizer em voz alta e, diligente, obedece a menina gorda.
Como Camila fez isso? Ele não sabe.
Mas ela e o irmão, Pedro, tem ele e vários outros zumbis em seu serviço.
"Será que vou ter de comer cérebros?"
Felipe não sabe. Ele era só mais um jovem como qualquer outro.
E um dia acordou morto, num caixão.
Ele não sente muita fome. Mas sente.
Olha com curiosidade para a cabeça da mulher a sua frente.
O cacelo dela começa a rarear no topo da cabeça.
Os cabelos, pintados de um vermelho alaranjado, dão um aspecto doentio ao branco coro cabeludo.
"Eca."
Mas ele continua olhando.
"Será que meus dentes abrem a cabeça dela?"
Ele passa os dedos pelos dentes. E estica o braço, tocando na cabeça dela.
A mulher se vira irritada. Olha para ele de maneira que ele se recorda de professoras que teve. De todas as que tiveram aquele olhar.
Felipe sempre foi um sujeito calmo.
Mas se ele um dia quiser comer o cérebro de alguém, essa mulher vai estar no topo da lista.
Sua vez no caixa chega, afinal.
Ele paga com o cartão de Pedro e leva as compras para o carro.
Márcio espera no volante.
Ele é também um zumbi.
No caso dele, é mais evidente. Ou isso, ou ele toma drogas.
Ele olha vidrado para fora. Felipe acha que nunca o viu piscar.
- Podemos ir.
E Márcio obedece. Dirigindo perfeitamente a brasília. Por si só, outro tipo de zumbi.
Quando chegam a casa a menina gorda abre a porta.
Camila é mais baixa que Felipe e deve pesar cinco vezes mais.
Ela se move jogando o corpo para um lado e para o outro, para um lado e para o outro...
Seu caminhar é hipnótico.
Felipe coloca os refrigerantes na geladeira e vai para a frente da lavanderia, atender os últimos clientes.
Os últimos, são sempre clientes noturnos.
Gente estranha que só chega a noite, nunca ficam até o raiar do dia, e eles tem as mais estranhas manchas.
"Será que eles comem cérebros?"
Felipe não consegue parar de pensar nisso e examina atentamente a cabeça de cada cliente.
Um deles não gosta e vai falar com Camila.
Depois dele sair, ela se volta para Felipe e aponta para dentro do prédio.
Karlos o substitui. Outro zumbi morto demais.
- Você é esperto.
A voz de Pedro lhe dá medo.
Camila faz os feitiços, mas é Pedro quem comanda os zumbis.
Os irmãos se complementam em suas diferenças.
- Você virá comigo essa noite. Mas pare de olhar para a cabeça das pessoas. Você não come cérebros.
O coração de Felipe se afunda no peito. Teria parado se já não estivesse morto.
"Até essa satisfação eles me roubam", pensa o pobre zumbi.
- Vá tomar um banho e procure se vestir bem. Pegue roupas minhas emprestadas.
Felipe obedece. Todos obedecem.
Algo neles tem de obedecer, já que nenhum de seus órgãos funciona.
E ele bem que tentou, mas sem coração, não há ereção.
E ele toma o banho sem muito interesse. Não sua mais, não tem cheiros.
Curiosamente, não apodrece.
Sua não-vida é um mistério, mas ele sente a cada dia, um esvair de sua curiosidade. Talvez em um momento do futuro ele se torne como Márcio.
Incapaz de, sequer, piscar.
Enxuto, vestido, se encontra com Pedro do lado de fora.
- Hoje, você dirige.
E eles vão.
A reunião é em um prédio antigo, no centro do Recife.
Ele desce, abre a porta para Pedro.
Ajuda ele a sair do carro e o vê entrar pela porta antiga de madeira.
Ele não sabe o que há no prédio, quem ou o que está lá.
E agradece por esperar no carro.
Pois hoje, ele sabe, que há coisas que até os mortos temem.
E ele sente vontade de abraçar um cérebro com os dentes, na busca de algum conforto, enquanto passa essa noite fria e vazia, a história de sua não-vida.

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