June 29, 2012

Ordinário


- Afinal, qual a pauta?
- Eu pensei sobre abuso sexual. Infantil.
- Hummm...não.
- Que tal "traição"? É algo que sempre preocupa as pessoas.
- Pode ser, pode ser.
- Sexo tântrico.
- Sexo tântrico?
- Sim. Soube que tem uns cultos ou gente de vários cultos secretos, desses da nova era, que agora tem se reunido para fazer orgias utilizando sexo tântrico.
- Eu não quero nem saber de onde você arranjou essa informação, Benjamim. Aliás, o que diabos vocês três tem hoje? Preciso de uma matéria decente para fechar esse buraco na segunda página e vocês só tem ideias idiotas?
- Você acha que abuso infantil é uma ideia idiota?
- Para meu público? Sim. Veja, não é nosso papel, não é nosso segmento.
- Eu me demito.
- Até logo, Cecília. Vá com Deus, que o Diablo lhe carregue! Mais algum de vocês quer pedir as contas?
- Não.
- Não, chefe...
- Então, pensem e solucionem. Vou pra casa. Na reunião de amanhã a gente conversa.

O carro estaciona sem fazer muito barulho. Mas quem está dentro da casa, sabe.
Eles aguardam esse som o dia inteiro.
Os cães chegam até ele, passivos, esperam um carinho, recebem e vão.
Ele entra. O jantar esta servido. Sua esposa sorri, nervosa.
O menino, calado, brinca com a colher e com as mãos.
Não olha o pai nos olhos. Não enquanto ele está comendo.
O homem termina sua refeição, então, mãe e filho, podem aproveitar o jantar.
Ainda há silêncio.
O pai observa eles comendo. Não se levanta, não diz nada.
O menino sente os olhos intensos do pai.
Percorrem lento o seu corpo.
Magro.
Ele busca no filho o seu vigor.
É o que diz a Mãe, noite após noite.
Machuca o filho com desconfianças que houve de madrugada, através de finas paredes grossas.
O jantar termina. O homem vai ver televisão.
- Alguém veio aqui hoje?
- Não.
- Filho, alguém veio aqui hoje?
- Não, Pai.
Ele olha desconfiado para os dois, para a porta, para as janelas. Num fungar, fareja.
- Bom.
E se cala.
Vê televisão e vai para o quarto, se trancando lá.
A mulher aferrolha a porta grossa e suspira aliviada.

Emília não se pergunta sobre a sorte.
Ela olha o filho nos olhos e isso basta.
Checa as portas e janelas antes de ir dormir, sozinha, na sala.
Não lava as mãos.
O sal que passou em janelas e porta, fica ali, e ela brinca com a textura em seus dedos.
Sal.
Ela sorri e lembra de Assis, ainda jovem, menor, só um estudante.
Ficou viúva logo, era jovem e gostava do rapaz.
Casaram logo.
Guilherme veio um ano depois.
Não veio sozinho.
Eloísa, Sara e Alberto, vieram juntos, separados apenas por alguns dias.
Ela não entendeu. Assis não explicou, mas deixou claro que eram nossos filhos.
O marido era estranho, ela sabia. Mas nada assim.
Ela se perguntava se ainda o entendia e, apesar do amor, pensava em deixá-lo.
Mudou muito.
Não só o comportamento tornara-se anormal, mas fisicamente.
Assis cresceu.
O rapaz franzino tornou-se um homem enorme.
E não eram só os músculos.
Tornou-se largo, mais alto.
Emília estava assustada. E agora isso: crianças deixadas em sua porta.
Não havia nada com as crianças, só um bilhete.
Em cada uma delas, um bilhete escrito em máquina de escrever, constando apenas o nome da criança.
Ela relutou. havia, no que Assis tinha se metido?
Ele não explicou, apenas instruiu.
No dia que Guilherme veio, começou a colocar sal nas janelas e porta.

O menino dorme tranquilo.
Sonha com o pai e a mãe.
O sonho vira pesadelo. Lembrança.
Alberto sempre tentava provocar os pais.
Retirava do quarto deles os objetos que o pai deixava pendurados.
Falava nas refeições, o que tornava seu pai irritado e rabujento.
E, um dia, tirou o sal da porta e das janelas.
A mãe não viu.
Estava dormindo, um cochilo que tirava durante a tarde, um costume que eles conheciam bem.
Sara brigava com Alberto em cochichos.
A menina estava furiosa, livida.
Tinha medo.
Eloísa caçoava dela, cantando: "quem tem medo do lobo mau, lobo mau, lobo mau, quem tem medo do lobo mau..."
E ele veio.
Guilherme sempre acordava em gritos nessa parte.
A mãe lhe tapava a boca, consolava.
Lhe mostrava o sal na janela.
Ele dormia de novo.

No quarto, ouvia os gritos dos filhos, uma lembrança que ele não testemunhou, mas experimentava nos pesadelos do menino.
Não conseguia dormir.
Ficava afiando o machado, esperando o tempo passar. Mas era inútil.
Pensava sempre nas crianças.
No enterro do irmão e cunhada.
No olho brilhante do pai.
Que tinha orelhas compridas.
Que tinha nariz grande.
Que tinha mãos enormes.
Que tinha dentes longos.
Seu sobrinho está quase lá, ele sabia.
"Filho", se forçava a pensar.
Mas tinha de fechar a revista.
E iria ligar para Cecília pela manhã.
Pedir desculpas. Afinal, admitir seu erro, ferir seu próprio orgulho, é o menor dos seus sofrimentos.
Mais agora, só queria uivar.
E deixar para trás esse dia.
Com tantas lembranças de horror, e ainda assim, ordinário.

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