September 16, 2012

Com uma perna fincada no passado

Recife, antes de Recife ser

Ele lavou a boca com a água do olho d´água.
E o olho d´água olhou para ele, sedento. Mas sabia, não era a hora. E deixava o homem tirar o gosto de homem da boca, sem o atrapalhar, apenas bebendo o gosto de sangue.

O homem não sabia da fome da água.
Não via os animais mortos no fundo, nem nos que aprodreciam a margem.
Desse momento, desse encontro de predadores, o homem não sabia.
Mas sabia sim, da fome saciada. Sabia sim: homem é bom.

Recife, 2012

André continuava morto. Fazia 30 anos que havia morrido, aos 8 anos, e ainda não tinha achado um bom motivo para viver.
Aparentemente diferente de outros, que insistiam em ficar vivos, mesmo quando deviam ter partido...
No jornal em sua mão, molhado pela chuva, já tornara manchete: quatro corpos achados em quatro semanas, mortos a pancadas, canibalizados., faltando um souvenier, a perna direta, arrancada a dentadas.
Joga o jornal junto a onde foi achado o último corpo e ao tomar o café frio, manda o copo de plástico para o mesmo destino.
O local é como os outros. Uma ponto, ou melhor, nos pés de uma ponte. Fáceis de serem achados. E mais próximo do local que aluga. Isso o intranquiliza.
Como sempre, ninguém havia visto as vítimas no local e nada elas tem em comum, exceto a grosseira mensagem: chamam-se André ou Andréia, tinham 38 anos no dia de suas mortes.
Ele olha para o fantasma da última vítima e começam a conversar.

Recife, antes de Recife ser.

Cuidadoso, quebra a lança. Sua ponta, fincada na refeição, é tudo que precisa.
Só volta para a vila pela manhã. Lá, já contam os vivos.
O medo deles é uma sobremesa.
Escuta o burburinho enquanto leva as pelas e as vende pelo mercado sujo.
"São os índios", ouve clientes e mercadores dizerem. "É o diabo", falam alguns poucos outros. "Nem um, nem outro", ele gostaria de dizer, se vangloriando de sua fome. Mas segue calado. Entrega as peles, pega o dinheiro. E sai sorrindo.
Que morre quando ele vê o turco.
O sorriso escorre devagar, contrastando com o quão rápido surge a lembrança.
A filha do turco entre seus dentes. Seu grande erro. E a jura de morte do único homem que sabe como lhe matar. O homem que fechou seu corpo com cantigas e rezas e tatuagens de tinta negra, em cada dobra de braço e perna e por sob suas pálpebras.
Mas ele não vê o turco.
Vê sua chinela. Assustado, o assassino corre da chinela turca.
Corre para onde veio da Espanha morrar, para o mangue, onde caça homens e animais.

Recife, 2012


É ele quem agora caça sob as pontes.
Faz frio, chove. Mas ele não liga. Está morto.
Os fantasmas das vítimas da Perna estão com ele.
Ela chega atachada ao corpo de homem. Não maior que André. E sorri.
Os dois lutam na lama.
Uma luta inútil, ambos sabem disso. André nem a perna podem ser mortos assim, de maneira mundana.
Mas não importa. A fúria de ambos é enorme.
Fúria que a perna aproveitou bem.
André descobre isso quando os policiais dão voz de prisão e o corpo em que ela estava, a Perna, a solta no rio e cai sem vida.
Os policiais atiram nele quando tenta pegar a perna água e ele desiste por enquanto. Já havia morrido uma vez. Para quê mais uma?
E sempre há o dia seguinte...

Recife, antes de Recife ser.

As mortes continuam. Logo, índios são mortos ao redor das vilas, acusados de um canibalismo que não praticam.
É um verdadeiro festim. O espanhol se banquetei de carne européia e brasileira e gargalha entre as árvores quando ouve tiros ou gritos dos índios.
Os índios o caçam, mas já o caçaram antes e o resultado foi o mesmo: ele não pode ser morto. O turco cuidou disso.
O turco...
Não o viu mais desde o dia do mercado, mas agora, sabendo que estava próximo, sentia uma pressão na nuca o tempo todo. Uma tensão. Se era sua proximidade ou só o medo, não sabia. Mas tentava se manter longe da vila.
E duvidando que o turco, que crusou meio mundo para lhe caçar. se aventurasse para a mata, se descuidou e foi pego pelos índios mais uma vez.
No meio do sorriso de certa vitória, reconheceu o ex-sogro e esperneou.

Recife, 2012

O delegado olha para André e balança a cabeça. Já se conhecem, desde que André trabalhou em jornal e depois se viram em circunstâncias menos agradáveis.
- Oi André.
- Doutor Paulo, tudo bem?
- Comigo...sim.
Ele olha para André e nem acredita no estado do morto. A lama mal esconde os hematomas.
- Eu vou estar bem depois de um banho.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Pode me explicar o que houve.
- Você quer mesmo saber?
- Infelizmente, preciso...
André passou a hora seguinte explicando ao delegado o que havia ocorrido.
Quando saiu da delegacia, voltou ao local em que brigou com a Perna.
Até na água, as vezes, principalmente na água, se deixam rastros.
E um morto foi caçar o outro.

Recife, antes de Recife ser.

Os índios pegam o espanhol e o amarram no mato onde o acharam.
O turco o olha com desprezo. Não ouve suas súplicas, nem lhe dá, verbalmente, seu ódio.
Com vagarosidade, vai invertendo o ritual que fechou seu corpo.
Sua cabeça.
Braços.
Uma das pernas.
E escutam a onça.
O animal, parece faminto, enorme.
Os índios correm.
O turco puxa uma faca.
Ele não tenta se defender da fera. Apenas enfia a faca no peito do espanhol e, após gritar uma última maldição, corre na direção da vila.
Ele fica só com a onça, que não se faz de rogada e salta sobre ele e o mata.
Só que não é bem assim.
Seu corpo morre, mas não a perna.
A perna continua viva enquanto o resto lhe apodrece e enfim, solta-se.
Livre. E com fome, que não merecia ter.

Recife, 2012

A perna se esconde num dos buracos da cidade.
Cabeluda e suja, não se mexe quando pressente o morto.
André sente o que parece ser um sorriso.
Ambos são fantasma. Cada um com sua fome. ELe precisa ajudar os outros. Ela, deles se alimenta.
Cada um com seu grilhão.
Ele senta ao lado do buraco.
Acende um cigarro, já que ele não pode mesmo morrer de câncer e olha para o céu.
A Perna, dessa vez, não resiste.
André a prende de novo.
Mas ambos sabem.
O tempo...bem, ele está sempre a favor dos mortos.

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