November 22, 2012

Aracema

Eles podiam ser irmãos. A despeito da dessemelhança de suas faces e emoções. Uma se contorce de dor. A outra, calma, vaga de pensamentos e emoções apenas sabe flutuar.
São ambos, os melhores no que fazem. Larápios, canalhas, raposas. Antes, separados por milhões de quilômetros, agora, por poucas centenas de metros.
Gêmeos desiguais. Um tem o braço triturado pela décima vez. Sua voz enche a sala. Em alto e bom som, anuncia a dissecação de suas ideias em sua totalidade. Quem o ouve, não se importa. Está convencido: os gritos são apenas um eco.
O outro tem o braço reformado. Casulo colado ao aço, seu corpo de carbono, metal e silício é meio refeito, meio construído. A nave-placenta lhe dá vida, lhe entrega as ferramentas e lhe sussurra seu propósito. Ele começa a cavar.
O asteroide oco tem uma população mínima: o prisioneiro, seu torturador, meia dúzia de cientistas e o triplo desse número em técnicos. Homo sapiens em sua maioria. As exceções são o gêmeo que sofre e é composto por órgãos binários, suas confissões são acolhidas por paredes 3D; O outro é um guarda, uma criatura mais complexa, que tal qual uma planária, desliza no gás pesado da sala de um dos experimentos. Banhado por radiação, o vigia quase não enxerga a rocha ruir.
Eles sabiam como entrar aí. O plano era arriscado, por isso mesmo daria certo. O que perfurou a parede externa, porém, não esperava o local sendo vigiado. A luta é instantânea e feroz. O sentinela se move para envolver o ciborgue, que reage soltando a furadeira ainda ligada, que rasga a criatura em sua passagem pelo vácuo. Ignorando o pó e seus pedaços que se espalham na câmara, circunda e pressiona o corpo do humanoide em um abraço.
A forma virtual de um é estraçalhada enquanto o corpo do outro é sacrificado.
O homem que sai de dentro sabe que vai morrer. O local pulsa com forças que negam a existência de vida. Ele grita, e cego, faz uma prece enquanto se lança na direção da furadeira.
A criatura percebe a fuga, mas não consegue soltar-se do ciborgue. Agora, não mais que uma carcaça, ainda a aperta com firmeza. Se agarram firme, escorregando com o gás para fora do asteroide.
O homem chega à parede. Desesperado, segura a enorme ferramenta e aponta para onde acha que está a instalação. A pressão do ar o suga para dentro quando o metal é rasgado, sentindo luz e ar. É um parto confuso. Seus olhos ardem, mesmo fechados. Sua pele queima. Ainda assim, não se atreve a respirar, até que escuta os alarmes e através das pálpebras, percebe o mundo piscando.
Não há pausa para descanso. Ele busca seu igual. O abandono prematuro de seu veículo, comprometeu tudo. Sempre fora uma missão suicida, mas não esperava morrer antes do que fora especulado.
Eles se encontram logo, A carne que falece confirma sua suspeita: fora copiado. O encontro deles é desprovido de amor, existe apenas a garantia de vingança ao se realizar o roubo. O digital, liberto, conversa com a carne anacrônica, lhe dá coordenadas e lhe deseja sorte, antes de expurgar a si do sistema. Agora é apenas ele.
Seu corpo começa a falhar. Cambaleia pelos corredores vomitando uma trilha. Os dados que veio roubar já foram deletados, mas não importa. Era um objetivo secundário. O que interessa, é o mecanismo de destruição, que agora carrega debaixo do braço capenga.
Não há mais cápsulas salva-vidas. Mas nunca houve nenhuma em seus planos. O efeito, exceto por alguns detalhes, era o mesmo: lançar-se ao espaço com o objeto e ser eventualmente descarregado em um novo corpo. Não imaginava estar tão mal. Não sabe se a radiação irá afetar sua memória, capacidades, personalidade. Também se preocupa com o fato de alguém tê-lo copiado, mas nada pode fazer agora. Apenas abraçar o aparelho, ser envolvido pelo nada e morrer.

Você olha para o corpo e sorri. Esperou ansioso por isso.
Sua nave, porém, ignora o corpo. Os tentáculos que saem na parte de baixo e tateiam o espaço, agarram o objeto que está preso ao corpo, com algo próximo ao que descreveria como carinho.
A arma contra a imortalidade.
A caixa é capaz de destruir sistemas de dados protegidos contra todas as formas convencionais de destruição, e o faz de forma limpa, sem rastros.
E o primeiro instrumento realmente efetivo contra IAs.
Seria pura inveja?
Quando a humanidade não passa de nada além de dados, podendo viver indefinitivamente, mas incapazes de evoluírem a si mesmos, eliminar aqueles que são capazes de se reescrever no universo, até chegar a uma imagem e semelhança com Deus que nunca conseguimos, não seria isso apenas uma mesquinhez?
Você pondera sobre isso. E pensa como reescreveu a si mesmo: desprovido de moral, um ladrão por excelência.
Trabalho tão bem feito que, por temor, sabotou seu duplo, vazando então um homúnculo digital para diminuir sua chance de sucesso.
E ainda assim, não somos capazes de melhorar a nós mesmos, apenas nos diminuir.
Você é cuidadoso. Se não o conhecesse tão bem, se não estivesse esperando o cadáver flutuando para fora da estação, eu não o teria visto.
É esse deliberado interesse em permanecer imperceptível que o salva.
Uma, duas e então, três naves, surgem.
Elas também se aproximam do corpo, mas são menos gentis.
Deixando para trás os pedaços de homens, vão em direção a estação incrustada na rocha. Não demoram e, percebendo o inutilidade de procurar por mais tempo, vão embora.
Você sabe que agora está seguro. Se prepara para ir embora. A nave gira em um de seus eixos e começa a se mover. Até que, subitamente, gera um brilho intenso e para.

Eu sei, você morreu.
A caixa resistiu ao choque. A bomba, mortífera, não seria capaz de a destruir, apenas você.
Eu acho engraçado. Enquanto me peguei pensando como cópias menores de mim mesmo, percebo como previsível eu sou.
Ou me conheço bem demais, o que é igualmente deprimente em certo nível.
Sabe, eu poderia mesmo seguir seus caminhos.
Devolver para a companhia de quem foi roubada, vender para a outra que tentou, entregar aos anarquistas interessados paranoicamente em defender a humanidade de si mesma... Ou, como planejei desde o princípio, sob ordens, levar para a minha organização.
E talvez, por inveja, queimar a IA que a controla.
Assim... Por acidente.
Talvez não seja um eu, alguém tão previsível.

1 comment:

Anonymous said...

Como sempre escreve muito!
o/ vamo que vamo