July 19, 2013

A


Ele levanta aos trancos. Na sala, olha para a mesa, abarrotada de remédios. Pega algo para dor, pega algo pra falta de ar, pega algo pra falta de amor. Ele ainda está desligado. Volta ao quarto, vai ao banheiro, urina e se atrapalha, percebendo que ainda tem os remédios em uma das mãos e os toma com água da torneira, enquanto com a outra mão, balança. Entra no chuveiro e toma um banho gelado, a água fere suas costas, pintadas de arranhões desde a noite passada.

Ainda abestado, abraça a parede e cambaleia para a cama. Estressado, cansado, confuso.
Aaaaaaaaaaaalelekleklekleklekleklek!
Aaaaaaaaaaaalelekleklekleklekleklek!
Aaaaaaaaaaaalelekleklekleklekleklek!
O alarme irrita, afugenta o resto do sono. Se veste ainda molhado e sai da casa, pegando mais remédios, tomando dois, sem saber bem o que são, assim, a seco. Ele está arrombado mesmo.
Aaaaaaaaaaaalelekleklekleklekleklek!
Aaaaaaaaaaaalelekleklekleklekleklek!
Ele desiste, fica online.

- Acordou, garanhão?
- Oi Adriana, tudo bem?
- Não. Liga essa porra direito. Precisamos de você em Aflitos.
- Tá bom.
- Tomou seu remédio?
Ele acha que sim.
- Claro, tomei. E você, tá medicada?
- Hilário. E não desliga isso de novo.

Ele veste a farda, pega o escudo e carrega as luvas no bolso da jaqueta. Os vizinhos olham com raiva, mas não falam nada. Uma ausência de respeito, um abundância de ódio. "Não pago essa merda como todos eles?", pensa, tomando mais cápsulas para a falta de amor. Desce pelo elevador, ainda contrariado, mas já passando. Para em dois andares antes de chegar ao estacionamento. A porta abre, mas as pessoas esperam, sem entrar. Apenas o olham com desgosto. No estacionamento, a moto começa a ligar quando ele se aproxima, a rota é planejada em um instante.

O trânsito está bom e ele corta caminho pelas calçadas, evitando atropelar algum vendedor. A rota muda, encrenca mais a frente. Ele não liga, insiste no trajeto. Dizem que é mal agouro, mas configura o azimute manualmente. Dois minutos depois, bota a moto por cima de manifestante.
- Aloka!
Ele olha para a direção do grito e vai em meio ao grupo.
- Assumção, volte!
- Adriana, aqui tá uma zona só, só anarquia!
- Aí ainda não está ruim. Temos guardas pra isso, mas estão invadindo a casa do prefeito. Quero você lá! Anda, porra!
Ele olha para os manifestantes em frente ao Clube Náutico e recolhe as luvas. Alguns começam a gritar, jogar pedras. Elas batem na barreira envolta dele e caem no chão, sem efeito. Mais gritos, urros. Monta na moto e segue em frente.

- Porra, que você tava fazendo, Assumção?
- Estou entendiado, porra. Tá boa a resposta pra você.
- Ei, tá parando de novo porquê?
- Água. Quero beber água. Posso?
Ele desce da moto em um posto. Abastece só, tira a máquina da mão de um atendente, paga. Ninguém fala com ele. Pega uma garrafa de água, bebe. O campo magnético da barreira deixa ele com sede. Ele aproveita e toma mais um remédio. Alergia, asma, amor. Uma baile de pílulas furta-cor. Ninguém no posto lhe dirige palavra, apenas aguardam que ele vá para voltarem a seus afazeres.

Em frente a casa do prefeito, ele chega tal qual cavaleiro. O prefeito brada um sermão, fala em Deus, chama os manifestantes de abominações. Ele já conhece o discurso. Branco, vestido de negro e amarelo, ele chegou pro apocalipse. Veste as luvas e começa a trabalhar. Os manifestantes correm, mas os outros policiais bloqueiam sua passagem, jogam gás, hackeiam sua AR causando confusão, batem e encurralam com canhões de som. As trombetas. Ele escorrega mais uma pílula para a boca e cai no pau.

Quinze minutos depois, monta na moto de novo. Os braços doem e escorrega um pouco no assento. Tem de limpar o sangue. Corre para casa, dessa vez, pela rua. A moto dispara como um azougue, um jato de prata no mar estacionado. Escuta Aperture no rádio, que afoga Adriana. Só volta a escutá-la quando para.
- ... e lhe congratulou pela ação de hoje.
- Bom. Olha, acho que algo passou pelo escudo, tem como mandar uma unidade?
- Hoje não. Amanhã eu mesma passo aí, viu garanhão? Tá bom assim?
- Tudo bem. Ainda vai precisar de mim?
- Tão amável. Você está bem, tigre?
Ele fica offline.

Desce da moto e pega uma mangueira. O zelador olha com raiva. "Só fiz meu trabalho", ele pensa. Lava a moto, se deixa molhar também, retirando a maior parte do sangue. Entra no apartamento e verifica duas vezes a fechadura e cadeados. Pensa nos olhos ametista da menina, no seu punho que lhe parte os dentes, quebra a face. Tira a roupa enquanto vai ao chuveiro, deixando as peças pela casa. Na água fria, se esfrega com força, e com raiva, rasga as próprias costas com gosto.

1 comment:

Unknown said...

Mt bom! Excelente, meu caro...F*da!