July 22, 2013

D


As sandálias protegem pouco do calor, um calor gostoso, que lhe escorre a saudade de casa. Diego ama Damasco. Ama cada escombro, cada rosto árabe que vê. Ama até mesmo o medo. É um estado delirante, um devaneio cálido, de um trêmulo cambalear de fim de tarde, onde o povo tenta ainda viver, em meio aos mortos, os tiros e explosões.

As ruas perambulam sob suas pernas. Começam a passar mais rápido, uma mistura de cinza e marrom, brilhos metálicos, e agora sobem e descem, parecem parar, e ele enfim, cai, desesperado. No lampejo de lucidez, se vê sangrando, mas não vê Daniel.

Pega na bolsa uma peça de roupa limpa e coloca com cuidado por dentro da blusa. Precisa se achar. Tanta dor. Por quanto tempo andou por aí? Suas roupas parecem ter sobrevivido ao dilúvio de sangue. Que cheiro horrível, que sede. Diego sabe que não deve beber agora. Em um bolso, pega um analgésico e antibiótico e os aplica rápido, ainda na sombra. Por entre os prédios surrados, enxerga uma praça próxima. Um diáfano de tijolos torturados.

Não perde tempo, qualquer lado pode aparecer e sabe que a luta adquiriu um caráter insano. Não sabe de quanto lhe vale o passaporte. Na sua experiência, muito pouco. Daniel devia estar logo atrás. Estava antes dos disparos. Espera mais um pouco e se sentindo seguro, tira a roupa. O colete, ela percebe, salvou sua vida mais uma vez. Beija a peça de kevlar e a coloca de novo, escondendo os cabelos longos. Após vestido, ele olha para a rua novamente. Precisa encontrá-lo logo, antes que caia a noite.

Continua andando pelos restos de Al Qahira. Dores e sol danados, o fazem andar devagar e ele teme. Pouco se respeita nessas situações. Lembra de Kosovo e o que passou por lá. Ainda jovem, idealista, quase morreu em meio a guerra civil. Lembra da horrível disenteria, dos corpos queimados, dos estupros constantes, onde até a terra parecia amedrontada. Mas em Kosovo foi onde o conheceu, o homem alto, barbudo, cabelos longos e óculos quadrados. Foi numa trincheira. Diego estava cansado, assim como todos lá. Passavam o tempo jogando dados. Todos já tinha ouvido falar dele, ninguém o respeitava. Todos riram dele quando se sentou na mesa. Chamaram ele de trapaceiro. Diego sorria. O homem não gostou. Seu soco arrancou quatro dentes. Acordei no dia seguinte e passei mais de um mês caçando ele. Ele o achou em uma caverna, perto de Tirava, na Caverna Negra. Podia ser mais apropriado? O fuzil disparou em suas costas. E de novo, e de novo. E o homem se levantou e olhou para Diego, sem preocupar-se com o sangue, o cheiro da pólvora, o som que deixaram ambos surdos. Com gestos, propôs um jogo. Mostrou a Diabo seus dentes e com uma esquerda mão vermelha, as balas que havia disparado. Pediu dados. Trêmulo, Diego os forneceu. O Diabo sentou numa pedra e o chamou para perto, e por nove dias, jogaram na escuridão onde apenas os olhos do inferno iluminavam a rocha. E Diego perdeu, balas e dentes.

Perdido num momento de demência, só reparou por pouco que já andava por si só em direção a praça. Sabia onde estava Daniel. Tão próximo, e ainda assim, a tantas balas de distância. Tinha de ser cauteloso. Não gostava de pensar no Diabo, sempre lhe perdia o fio do mundo. Um drama pessoal que não o largava. Talvez se não tivesse demonstrado tanto desdém?

A comprida praça ainda tinha árvores. Ele se esgueirava o melhor que podia. Ouvia tiros o tempo todo. E, logo um pouco mais adiante, o cemitério de Bab el Saghir. E ele estava lá. Não, não só Daniel, mas também o Diabo. Diego tinha certeza. Ainda o sentia em si, como os dentes que voltaram a sua boca. Tinha medo. Lembrou quando o Diabo lhe devolveu as roupas, fazendo-a prometer que seria sempre dele. Dúvida e medo. Teria coragem de vê-lo de novo? Teria coragem de voltar ao Brasil e dizer a família de Daniel que perdera o rapaz, horas depois de o achar na cidade moribunda? Ele seguiu em frente, segurando a pequena pistola como um crucifixo, e a sabendo tão inútil quanto.

Ele sentia o Diabo.
- Feliz em te ver, mesmo com esses olhos de diadorim.
Diego girou nos calcanhares e quase caiu. Estava no Recife, mas não era Recife. Era uma cidade de morte, onde abutres disputavam o ar, substituindo os podres pombos da sua cidade mãe. E tudo cheirava a Damasco queimada.
- Lindo, não? Um dia eu olhei pra cidade e suspirei no ouvindo de seus fundadores: delenda.
Diego não achava graça. Respirando fundo, apontou a pistola.
- Vai matar o rapaz? Depois de tudo que lhe despertou?
O Diabo sabia. Claro que sabia. "Seus dentes e sua vida, mas você será minha", ela ouviu junto de seu pescoço, um suspiro em bafo quente, saindo da caverna fria de seu coração.
Só agora via Daniel. O rapaz também estava ferido, em muito pior estado que ele. Passou dois meses buscando por qualquer sinal do brasileiro, e após o encontrar, duas semanas atravessando juntos o país. Se apaixonara por ele. E naquele momento, no momento em que apercebera disso, sentiu o diabo sorrindo.
- Não, não vou matar mais ninguém.
A bala dispara da pistola de Diego, percorrendo um caminho escuro. A mão do diabo é mais rápida. Uma mão esquerda que insiste em ser vermelha, é dessa vez perfurada.
Diego cai ao chão, com o peito sangrando. Tossindo. Da pequena mochila, cai seu passaporte, que se abre numa foto quase irreconhecível, onde se lê seu nome de batismo: Drusa.
O Diabo cospe numa lápide, com visível nojo.
- Você não me serve morta. Mas eu ainda volto, nem que seja para um último jogo.
E ele caminha em passos largos, orgulhoso, mesmo com a mão gotejando sobre o chão que pertence aos mortos.

Com os cabelos longos soltos, o boné e lenço distantes, ela se levanta e corre para o rapaz.
- Daniel? Daniel?
O rapaz olha entorpecido, bebendo a luz e o sorriso, de um desmantelo de mundo.
- Eu morri?
- Eu espero que não.
E chorando, Drusa o aperta contra o peito e o ajuda a levantar-se. Para ambos saírem dali, deixando para trás as suas vidas.

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