April 10, 2012

Herança


Ela é frágil. Ela é tão frágil. Leve. Sua pele parece um pergaminho velho, fustigado por um tempo cruel. Seus olhos brilham a despeito da idade. Ela mal respira. Minha mãe.

Eu sei que ela logo irá embora. Iremos todos, um dia. De volta para o chão, virar comida de baratas e lacraias, ou ardendo em chamas. Nossa última viagem é solitária, sempre solitária, deixando aqui nossas cascas para que sejam comidas e um dia, obdecendo ao ciclo, fadados a fazer parte de outras cascas.

Pego o copo de suco de laranja e bebo, olhando para as máquinas que a cercam, para o quarto despojado e mal cuidado. Não vejo decência em hospitais, há um despudor que é parte de uma natural praticidade do ambiente, parte de uma agravada desumanização de quem trabalha com saúde.

O local é calmo. O som de passos, máquinas e nada mais. É tão calmo que escuto a morte passear nos seus corredores. Magra, ela se move lenta, visita os quartos e nunca se sacia. Ele espreita minha mãe, treme excitada mesmo com esse parco festim, lambe os beiços e segue adiante, ainda mais faminta.

Ela não tem hora de visita, e é a única visita, que nesse local de cura, entra e sai sem receios. Ela não tem expectativas, não tem pressa. Apenas chega aqui, apenas é. Não há beleza na morte, nada que vingue sua nudez escancarada, ela veste a si, apenas com solidão.

A vista cansada de minha mãe, mal me enxerga a seu lado. É como se eu fosse invisível. Não é bem um efeito da doença, mas uma qualidade adquirida, uma perícia treinada e aperfeiçoada com o tempo. A capacidade de ignorar todos que não lhe são úteis ou que não lhes convém naquele momento.

Posso lamentar sua perda? Talvez. Mas aprendi muito com ela. Minha mãe. Sua frieza, sua certeza, na aplicação de vinganças, sejam palavras ou ações. A busca pela forma mais cruel de atingir a mim e minhas irmãs. Que melhor botão apertar, qual causa mais pressão, medo. Claro, era generosa, carinhosa até, quando nos comportávamos como cães, realizando apenas o que era esperado de nós. Então, talvez.

A morte vaga, paira, e faz aquilo tudo que dizem que a morte faz. Minha mãe murmura. Eu não entendo o que ela diz. De nada adiantaria lhe falar. Ela, que também sempre praticou muito bem não ouvir nossas queixas, enfim, ensurdeceu. A morte vai embora, lambendo os lábios apertados, a língua, um fiapo vermelho.

E ficamos, sós. Eu e minha mãe. Esperando. Sem nada a dizer um ao outro.


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