April 12, 2012

Imortais


Recife, 1934

É um começo.
Eles chegaram. Pelo menos dois deles.
Eu desço da árvore com cuidado, e ao tocar o chão, percebo que o terceiro deles também está aqui.
Ele larga sua máscara e se aproxima da casa comigo, andando ao meu lado.
Até chegar na porta, sua pele já caiu.
A casa é grande e propositalmente mal iluminada. É melhor assim.
O fantasma abre a porta. Ele parece vivo. Se não fôssemos tão parecidos, não notaria que está morto.
É estranho ver ele assim, tão vivo. Para mim, é evidente que ele está morto.
Quando entramos, sinto o calor do cavalo.
O cheiro forte de cachaça domina a casa.
Conversamos por horas.
Desde o incidente, é a primeira vez que nos vemos.
Quatro vigilantes, tão diferentes. E um inimigo em comum.
O Papa Figo.

Lembro. Criado de uma poça de lama. Barro, se você preferir, como foram todos os homens em tempos passados.
Erguido da terra dois anos atrás, já homem feito.
Mas certamente, nada como a imagem de meu criador.
O homem era velho, pequeno, magro. Ele me esculpiu como um colosso.
Suas primeiras palavras foram uma ordem.
"Mate-o". E eu sabia quem. Eu queria matá-lo.
O homem havia arruinado a sua família.
A sua filha.
Eu já sabia disso. Parte do velho, sua herança, um baú de memórias boas e sujas, veio para mim.
Assim, sentia eu mesmo o ódio e sabia como encontrar meu algoz.

O apartamento dele ficava em um prédio antigo.
Meu impulso era matá-lo o quanto antes, pensar nele só me enchia de fúria.
Quebrei portões e portas assim que o vi na varanda.
O peguei entre meus dedos e parti sua garganta.
Então, ele riu.

O papa figo me atirou da sacada.
No chão, me parti em pedaços, me dobrei, ou fiquei amassado.
A imitação de carne, ossos, sangue, não passa disso.
Sou feito de barro, da terra.
E esta me recompôs.
Lentamente, meu corpo era o mesmo de antes e pude ver, por uma das janelas da casa, a figura do monstro.
Ele sorria.

Saí de lá sem pressa. Havia um impasse. Ambos, imortais.
Comuniquei o caso a meu criador. Ele faleceu poucos dias depois.
Mas sua ordem ardendo, imperiosa e odiosa, em minha testa.
A vingança queimava por dias e noites e logo tentei matar o Papa Figo novamente.
Falhei como da primeira vez.
Mas desta vez, não falhei só.
Os outros estavam lá.
O homem das máscaras.
O morto-vivo.
O cavalo.

Nossa derrota marcou nossa união.
Juntos, decidiremos como destruir o Papa Figo.
Ou assim pensávamos quando nos reunimos na casa afastada e escura.
Discutimos nossas capacidades, dons, uns com os outros.
Eu certamente era o mais forte fisicamente.
O mascarado porém, tinha uma ferocidade instintiva inigualável.
O Cavaleiro tinha um conhecimento místico que rivalizava meu criador.
Aquele que havia morrido, o fantasma, era o único de nós que podia se passar perfeitamente por um humano.
Fizemos planos, vários, mas nada parecia acertado.
Terminamos nossa reunião marcando outra.
E a casa foi atacada.

Chamas, explosões.
O Papa Figo, Boitatá, a Senhora do Prata, a Perna Cabeluda...
Imortais, todos, talvez em sua primeira reunião,
Talvez depois de fazerem planos inconclusos,
Atacaram. E imortais ou não, fomos destruídos...

Recife, 1984

Eu volto a pensar. Da lama, do caos, meus pensamentos se formam novamente.
Uma cabeça, ainda com a marca de ódio. Um braço, com a pele negra, como de tantos outros que foram escravizados nessa terra.
E meus olhos, ainda sujos de lama, viram uma mão amiga.
O Fantasma. Ele está diferente.
Porém, é o mesmo.
Ainda é um homem comum, morto por dentro.
O vejo como uma ele é nessa nova encarnação, apenas uma criança.
Mas ainda um aliado.
Uma esperança.
Um começo.

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