April 27, 2012
O Bartender da Meia-Noite
Recife, 2006
23:45
O outro bartender foi embora me olhando esquisito. Todos eventualmente me olham esquisito.
Um cliente se aproxima. Branco, 57 anos, rico, mal vestido.
- Eu quero uma bebida forte e ao mesmo tempo suave algo com...
- Um Kyr?
- Isso! Como vc sabe?
- Experiência.
Eu sorrio. "Não lhe conto meu segredo e você fica sem saber o meu", penso. Simples assim.
O nome dele é Luiz Carlos. Assassinou a esposa 20 anos antes, tomou boa parte de sua fortuna.
Matou mais mulheres desde então. Mas o fez por prazer. Anoto discretamente seu nome, endereço, onde o corpo da esposa está escondido.
Surgem clientes habituais, clientes novos, alguns vem me ver pois eu sei exatamente o que querem beber e a história se espalha, como todas as história, se espalha.
Atrocidades desfilam diante de meus olhos, imundando minha mente com horror, prazer, culpa. E eu anoto.
Eu já fazia isso bem antes.
O problema, no entanto, é agir.
Saber que alguém comete um crime, em todos os pormenores, é uma coisa. Agir contra, é outro.
As dificuldades são imensas.
Poderia eu simplesmente matar quem acho que merece?
E como faria isso?
E a polícia?
A culpa me consumiu e eu tentei me livrar dela assim, anotando tudo, em pilhas de cadernos.
Pilhas sem fim.
Seria toda essa cidade amaldiçoada com esses horrores? E eu, sempre, incapaz de agir?
Então eles vieram ao bar.
Um homem branco. Não, não um homem. E eu me recolhi. Minha mente fugiu de seu olhar. Dois olhos negros.
Uma escuridão sem fim, um vazio capaz de sugar a alma.
Com ele estavam os outros monstros. Não é possível definí-los de outra forma.
A mulher era de uma beleza incomum. Sua pele desafia uma descrição, branca, sim, mas só isso e além disso. Vestia-se com um longo vestido azul claro. Os clientes a olhavam famintos, mas paravam quando olhavam suas companhias.
Os outros dois não eram menos interessantes.
Um travesti que abertamente mostrava suas pernas cabeludas. Uma peruca que não se fixava bem a cabeça. Batom meiio borrado, alto e forte.
E por fim, o homem de ôculos escuros. Talvez funcione em filmes, mas óculos escuros em um bar, mesmo durante o dia, me parece estúpido. Ele lambia os lábios o tempo todo e se movia de forma hipnótica. Havia um caráter estranho em como andava que até hoje não consigo definir.
Eles sentaram perto do bar.
Os garçons brigavam para que não ter de ir servi-los e os repreendi com o olhar, mas admito, também não iria naquela mesa se pudesse evitar.
E o homem de olhos negros levantou-se e veio ao bar.
Ele sorriu.
Eu desmaiei.
Não foi o medo, foi o choque.
Centenas de anos de escuridão, morte, devassidão.
Como acontece com todos, eu sabia o que ele queria beber.
Uma alma imortal e cansada, que buscavam sentir prazer com um mundo que lhe entediava.
E o faria bebendo sangue. Sangue de todos, sangue do mundo.
Sorveria almas como um draga.
Acordei num hospital.
Percebi que estava vivo ao ver a luz das estrelas pela janela.
Tive alta, mas fiquei no apartamento.
Quando voltei ao bar, não era a mesma coisa.
Checava o que acontecia, mas tinha medo.
Sempre me perguntei se outras pessoas tinham talentos como o meu.
Nunca imaginei, porém, que coisas como aquela existiam.
Tinha muito, muito medo.
E ao mesmo tempo, precisava do bar. Não conseguia mais dormir.
Não sem o sol. Sol alto. E dormia de janelas abertas, a pele, mas não o medo, queimava.
Então eles vieram ao bar.
Um homem branco. Não, não um homem. E eu me recolhi. Minha mente fugiu de seu olhar. Dois olhos castanhos.
O medo do nada, o pavor da lembrança. Mas não havia nada.
Ele aproximou-se do bar e não pediu nada. Ficou olhando, gigante, a minha frente.
Virou-se para outros que estavam atraás e que não havia percebido.
A mulher beberia todo o bar. O dos homens queria um cerveja e outra coisa que não tinha no bar, nem saberia o que é.
O fantasma não bebia. Mas pediu uma vodka.
O homem continuava me olhando. Ele sabia.
Conversamos depois.
Passei a dar informações a eles, informações sobre os clientes do bar.
E sobre os quatro horrores.
Eles não vieram mais. Mas havia quem os conhecesse, quem tivesse feito trocas com eles.
Os quatro vigilantes contra os quatro horrores.
A luta entre eles era indireta. NEnhum dos dois estava preparado para eliminar o outro.
Mas os vigilantes tinha um ponto fraco, um problema.
Alguém a quem recorriam. Alguém público, visível.
Alguém que já tinha sido tocado pelos horrores.
Eu.
Eles vieram de novo.
Era meia-noite.
O bar se esvaziou logo.
O medo se derramava lento e palpável como um gel.
Frio. O bar tornou-se terrivelmente frio.
Ficamos apenas nós.
Eu tinha medo. Mas não podia fugir.
Não havia recolhido tantos pecados para nada.
Não havia redenção para um covarde.
E seus pecados se abateram sobre mim como o mar que devora uma rocha.
Lenta, mas incansável.
O homem sorriu. Vi suas presas. Suas belas presas.
E ele queria beber a mim.
Foi tudo muito rápido.
A isca nem sabia bem o que estava acontecendo.
O monstro (qual deles?) estava beijando ou mordendo o fantasma.
Uma mulher de perna cabeluda foi puxada para debaixo do bar por braços imensos.
A garota de máscara saltou um momento para dentro do bar e logo se enroscou com a serpente.
A mulher me soltou um olhar gelado. Mas ao avançar, parou.
Gatos a cercavam e um homem, saído do nada, lhe enlaçou com fios brilhantes.
Os horrores lutaram, mas os vigilantes, a sua moda, venceram.
Eu?
Eu ainda sirvo bebidas.
E não, não sei o mal que está no coração dos homens.
A menos que eles me peçam uma bebida.
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