April 30, 2012
Prata
Recife, 2009.
- Boa noite, o que deseja?
- O senhor tem um copo d´água, pode ser de torneira mesmo, e aqueles pães que parecem uns canudos?
- A senhora deseja uma entrada? E como prato principal?
- A conta, por favor.
Cintia deixa o restaurante após comer a entrada.
Pensando em quando está penando, lembra de passar na casa de Michel, mas está cansada.
Afinal, sono é uma doença crônica e hereditária.
Ela entra no carro, liga e não sabe para onde vai.
É sono demais.
André. Claro.
- Cíntia, tudo bem?
- Oi André. Tudo bem?
- Sim, sim. Entra. O ap tá uma zona. Você podia ter ligado.
- Eu sei. Mas preferi fazer surpresa.
- Cíntia, tá encrencada ou algo assim?
- Ai, André, você sempre vê através de mim, né? Sempre sabe o que acontece comigo...
- Ei, ei. Que foi? Olha, senta aí. Quer beber algo? Quer uma água?
- Você tem cerveja?
- Cerveja, Cíntia?
- É, André. Preciso relaxar.
- Tá bom...
- Você ainda curte essas coisas, né?
- Fala da decoração?
- É.
- É, ainda curto.
- Eu gosto das cruzes. Esse preto todo é que acho estranho.
- Bebe skol?
- Bebo.
- Tome. Sente aí. Deixa eu puxar essa cadeira. E aí, me conta.
- Sabe o londrino?
- O galego? Michael?
- Isso. Ele é metido com umas coisas que...vou te contar, viu...
- E você se meteu com as mesmas coisas?
- Claro que não, né André? Sou doidinha as vezes, mas nem tanto!
- Então, que houve? Ele te meteu em alguma?
- Sabe aquele padre que tentou despertar a Senhora do Prata alguns anos atrás?
- Tentou, não, despertou, né? Sim, mas o que é que tem?
- Michael pretende realizar o ritual de novo hoje, mas ele pretende circunscrever ele numa palíndrome.
- Numa palínd...não.
- Sim.
- Porque você não me disse antes?
- Éris.
- Droga, Cíntia.
- Bem, eu assumo que devia estar agradecido por você ter me avisado.
- Isso. Você me deve.
- Bem, não estou agradecido.
- Ainda me deve.
- Está bem, devo. Agora vai, preciso preparar umas coisas.
- Eu quero cobrar meu favor...
- No que você está...ei! Não, não e não, Cíntia.
- Não posso dormir aqui?
- Dormir. Você pensava que era mais alguma coisa?
- Se você tirar o sorriso cínico do rosto, eu talvez pense que era só dormir. Bem, dormir, pode.
- Tá. Beijos e boa sorte.
- Não destrua meu apartamento. Tchau.
- Michel, você sabe de Cíntia?
- Que minha irmã fez agora?
- Me atrasou, só isso. Mas ela te falou de Michael?
- Eu sei que estão namorando ou algo assim, né?
- Isso eu não sei, mas estou indo agora para o Açude do Prata.
- Eles fizeram?
- Fala do ritual? Ela disse que ele fez...
- Ele não podia fazer sem ela. André, você já ligou para os outros?
- Não, estava antes querendo falar com você. Olha, pega sua irmã no meu apartamento.
- No seu apartamento?
- Ela que apareceu lá, sem ser convidada, Michel.
- Está bom. Obrigado, acho.
- De nada, até.
André liga para os outros. O Cavalo, a Mascarada, mas o Golem ele chama usando um pequeno talismã.
Eles se encontram já em Dois Irmãos.
- O ritual já foi feito.
Diz o Cavalo, suando mais do que o normal.
- Tem algo errado aqui. Estavam nos esperando.
Ele cai no chão. De árvores, das sombras, surgem gatos que o cercam. Ele parece melhor.
- Não vou poder acompanhar vocês.
- Uma inversão? - Pergunta o Golem.
- Sim. Procurem sinais de sacrifício, gatos, talvez.
Eles entram no zoológico.
O guarda na entrada não tinha ferimentos visíveis, mas estava morto.
André o vê apontando para dentro do zoológico e mostrando que o seu corpo agora se encontra desarmado.
Logo acham também os sinais de sacrifício: uma pantera morta e eviscerada. O Golem destrói os vasos com os orgãos do animais e recita algumas palavras.
O grupo está tenso.
Ainda assim caminham para o Prata.
O Golem na frente, justamente por já ter sido derrotado pela Senhora do Prata, é a melhor forma de demonstrar que o grupo está confiante. Por mais poderosa que seja, ela é um fantasma, e de acordo com André, eles se alimentam tanto de medo quanto da percepção de medo.
Há luz na casa abandonada. Ela bruxuleia, num azul esverdeado, com fortes raios de prata.
A luz se move dentro da casa. Há outra luz também, que parece competir com a primeira.
Sons de uma discussão. A segunda luz se apaga.
O Golem se aproxima e vê Michael saindo da casa.
- Para trás!
Ele grita segundos antes de Michael esbarrar violentamente contra ele.
O corpo não é mais do feiticeiro londrinho. Suas órbitas estão vazias e dela jorra uma luz prateada.
Ele bate furioso contra o corpo de barro e rocha, suas mãos quebram e sangram, mas furioso, o cadáver ignora tudo o mais.
- Vão, eu seguro ele. Destruam ela!
Eu corro para a casa, passando pelos dois.
André corre atrás de mim. Eu ponho a máscara da raposa.
"Aline, espere!", eu ouço André gritar num sonho de humano.
Mas é tarde. Sou uma raposa cinza, rápida, em corpo de mulher.
Minha mente pertence a pequena e astuta besta.
Eu entro na casa e rosno de mesa e raiva.
O cheiro dela é forte, assim como de Michael.
Ela surge do andar de cima.
A Senhora do Prata brilha.
Quando me vê, sorri. Devora meu medo, mas não o extingue.
Eu salto sobre ela, e atravesso a água, que me suga a perna como a pata de um animal, um pequeno e indefeso mamífero.
Cada fibra de mim é necessária agora.
- Eu sou aline...- eu sussuro enquanto troco de máscara.
Eu sou calor. Eu devoro tudo. Eu destruo tudo.
Água me fere, mas torna-se vapor.
André chega na casa. Ele tenta me tocar, mas pulo, longe dele.
A parede da casa cede onde toco, engolida por calor e chamas.
Ouço ainda os gritos da Senhora do Prata. Ela luta com André.
Eu queimo a grama, a grama com água que faz arder o corpo de uma mulher em chamas.
E desmaio.
- Vá e não vamo mais ferí-la. Vá e deixe essa casa. Deixe tudo. Leve seu mal consigo!
Ela me ignora. Ela sorve meu medo como um aspirador.
É inútil. Ela não pode matar os mortos, nunca poderá me matar, mas sente meu medo mesmo assim.
Medo pelos meus amigos. Medo pelas pessoas de minha cidade.
Então vejo o palíndrome e por um momento, um segundo, me perco.
Não sou André. Sou só um Fantasma. O Fantasma.
Não o homem moreno, queimado pelo sol do Recife.
Sou velho como o primeiro homem.
Talvez o primeiro fantasma a vagar na Terra, a primeira vítima de um assassino.
Agora é a Senhora do Prata que teme.
Mas ela não pode recolher-se nas águas.
Não enquanto nossas mãos se aferrolham e seu brilho torna-se mais intenso, enquanto a absorvo.
Ela grita. Um grito doloroso. Um dor tão humana.
E André volta.
- Não!
Grita o Golem.
Ele vê a Senhora do Prata megulhar na lagoa e deixa seus braços caírem.
- Perdemos uma oportunidade aqui.
- Eu sei. Mas me assustei, não sei o que aconteceu comigo quando vi o palíndrome em seu bracelete, mas aconteceu algo comigo.
- Paciência. Sabemos que ela voltou e que podemos lidar com ela.
- Aline!
- Oi André.
- Vocês dois se abracem outra hora, vamos.
E os três vão embora, deixando o corpo de Michael, perdido agora na escuridão.
Michel fica sentado ao lado da irmã que dorme na casa de André.
Ambos, vendidos pelos pais, muito tempo atrás.
Longe de serem imortais, são, no entanto, veículos.
Ele estremece e sua, cada vez que escuta sua irmã sussurando seus sonhos.
Ele não entende muito, exceto uma palavra, que ela repete muitas vezes:
Éris.
E ele sabe.
Essa noite foi apenas um interlúdio.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment