May 03, 2012

Guarda Chuvas

O chão é escorregadio. Choveu. O calçamento, coberto de limo, mistura o cinza, negro e verde, numa composição que é quase única.
Não sei onde leva o túnel. Não sei porque entrei nele.
Está bem, minto.
Sei muito bem.
Foi a mulher do ônibus.
Estava chovendo tanto que entrei no primeiro ônibus que passou.
Paguei, atravessei a catraca e sentei.
Ela sentou do meu lado. A saia no meio das coxas grossas, a pele bronzeada, uma cor de sol.
Ela me notou olhando e começou a passar as mãos nas coxas.
Discreta, mas propositalmente deslizando os dedos, numa carícia lenta, circular.
Vez por outra, faz um gesto de "vêm cá", me chamando com o dedo.
Eu olho o anel no meu dedo e hesito.
Olhando o seu dedo, seu pedido, me excito.
Ela olha para mim, entreabre os lábios e levanta-se.
Eu também.
Escondendo, sem jeito, minha ereção, eu levanto da cadeira e a sigo.
Descemos do ônibus, em um bairro que não conheço.
Está escuro, há muitas árvores e as lâmpadas dos postes, ou tremulam ou estão apagadas.
Sigo o som dos passos dela, os saltos batendo e estalando no calçamento. Ela sobre uma, duas..quatro ruas? Não sei ao certo.
Vez ou outra enxergo seu rebolar, suas pernas bem torneadas, o vestido vermelho.
Meu pau já doia, forçando o tecido de minha roupa. Não pensava em nada, só em vê-la de novo.
Quem, no meu lugar, notaria a abertura, a rampa, que levava ao túnel?
Ninguém.
Só os sãos, só quem possui sobre si, algum controle.
Eu não enxergo. Me sinto antes de tudo, guiado.
Então, já cançado de andar e agora, menos excitado, vejo uma luz.
É um local amplo, escavado na terra.
Estou nas próprias entranhas da cidade.
Sinto, então, seu toque.
É ela.
E me viro, com tesão.
Sua mão se aferra a meu pênis como uma chave de cano.
É dor e prazer vindo de uma mão delicada.
Eu a beijo, e sinto seus dedos mordiscando meus lábios.
Dor.
O que é isso?
Seus dentes são presas, sua força, incomum.
Ela morde meus lábios, me fazendo sangrar.
Eu tento empurrá-la, e vejo agora a pilha de ossos atrás dela.
A chuva lá fora deve ter aumentado, vejo água correndo mais forte.
Vejo a luz agora de onde vêm, se jarras com óleo e gordura. Um cheiro que me agride.
E pedaços de carne ainda flutuam ali.
Tão ali, logo ali e ela morde, aqui.
Desesperado, ponho a mão na frente do rosto, um gesto inútil, ela vai me comer os dedos.
Então sinto o impacto forte. A dentada.
E uma presa se parte.
No anel.
Ela grita de dor e me libera.
Tento sentir se meu pau ainda existe e sim, ele ainda está lá. Dormente, mas lá.
Cambalendo, corro.
Subo.
Celular na frente.
Iluminando.
Jogando.
Luz.
Ouço a chuva forte.
Vejo os restos dos entalhes.
Serpentes. Milhares de serpentes.
Entalhadas no túnel antigo.
Esquecido.
Eu corro.
Tropeço.
A canela dói.
Passo as línguas na boca mordida.
Me forço a levantar.
Corro mais.
Chego na superfície.
Reconheço agora o bairro.
Vivi aqui quase toda minha infância.
Me apoio na parede. Vou me arrastando assim, apoiado.
Chego ao fim da rua.
Percebo que é quase manhã.
Meu celular toca.
- Chico, cadê você?!?
- Lúcia! Graças a Deus! É tão bom ouvir sua voz!
- Chico, está tudo bem?
- Agora está. Estou voltando pra casa.
- Homem, pelo amor de Deus, que houve?
- Eu te explico em casa, juro...
Estou vivo.
Intacto.
Nessa noite, nada perdi.
Exceto o anel, que mordido, se partiu.
Protegendo meu casamento, melhor que muitos outros, de quem os ossos pertenciam.

No comments: