May 26, 2012

Lenda Indígena


Vou lhes contar uma.
Civilização. O nome sempre me pareceu, antes de tudo, um prodígio. Fui mandado para a "civilização". O nome que, para todos de minha tribo, era uma piada.
Como estudioso, porém, me senti feliz com o convite. A perspectiva de viagem não era agradável, afinal, nunca, nenhum de nós, afastou-se de nossas terras. Porém, era ao mesmo tempo, excitante.
Eles insistiram que eu fosse para a sua cidade de "avião". Seus pedidos eram acolhidos com gargalhadas. E enfim, irritação. O chefe de nossa tribo ameaçou cortar quaisquer relações com eles. Assim, se aquietaram.
Fui no dia combinado, na hora combinada.
O avião levaria horas. O avião não tinha haver com meu povo.
Na superfície, na margem do rio, chamamos o anhangá.
Do ar o espírito se fez, da água se deu forma, das chamas sugou inteligência, da terra se fez corpo.
Subi nas costas dele e chegamos em menos de uma hora dos brancos na sua cidade.
Ela fedia. A "civilização". Desci enquanto homens armados cercavam a mim e ao espírito. O anhangá olhava irritado, o fogo em seus olhos mais brilhante, suas galhas brilhavam com fio de navalha de osso. Sussurei em seu ouvido e um agradecimento e ele, mesmo hesitando, se foi. No ar, sumiu como chegou, deixando terra enlameada onde tinha estado.
Os homens me lavaram ao prédio cercado de panos coloridos. "Badeiras", me disseram.
Em uma sala fechada, líderes de "nações" vieram falar comigo.
Não sabia o que diziam. Sua língua não era da terra, mas trazia como comigo um pedaço de Naiá e as estrelas me traduziam o que diziam.
Não gostei, mas ouvi. Ouvia em silêncio. Eles me pediam provas de que era capaz de fazer coisas que seus homens lhes diziam.
Lhes respondi em minha língua, deixando que Naiá lhes deixasse ouvir nas suas.
Eles nem me ouviram, espantados com o que eu fizeram.
Como crianças, se maravilhavam com Naiá.
Me trataram melhor, com respeito, as crianças.
E o tempo passou.
O mundo mudou.
Claro, tentaram tirar a nossa paz, roubar nossos segredos.
Segredos que estavam a vista do mundo, bastando perguntar as plantas e animais o que fazer.
Como usar guaraná para espiar ao longe, como prever e mudar o tempo, como curar os males e viver para sempre.
Tudo o mundo sabe, quando se está no mundo.

Marte. Tão fora de nós quanto o sol, e tão próximo que somos quase irmãos.
De novo, me afastei da tribo.
Os outros homens não entendem ainda o mundo e querem conquistar o universo.
Mandaram uma "nave" para Marte. Tripulada.
Eles não pediram nossa ajuda, acham que nos extraíram tudo e podem, agora, nos ignorar, e enfim, nos deixar em paz.
Mas fazem ofensa ao vizinho.
E fui ter com Saci.
- Bicho ruim, lhe trago fubá.
Ele sai do mato cheirando a fumo. Em uma perna só, o monstro chega.
Os olhos de negro brilhante, os dentes pontudos e longos.
O vento, seu inimigo, tenta lhe negar passagem e redemoinhos faz.
- Que bom índio velho. Ou seria menino? Que queres pelo presente?
Eu olho pro Saci. Ele olha pra mim. Dizem que ele foi índio e que foi longe e a viagem o transformou.
Será que me tornarei assim, um monstro?
- Quero ir pra estrela de brilho encarnado.
Ele olha para mim com novos olhos. Olhos que me veem a partir da palma aberta de sua mão esquerda.
Esses não são negros, são como os olhos de índios, preto no branco.
- Fubá não basta, índio velho.
- Me diga seu preço, Pererê.
- Me leve para a Iara.
- Quer tanto assim, morrer?
- As vezes os olhos cansam de ver tanta estrela se apagando, índio velho.
- Feito, mas só levo quando voltar.
O Saci, irritado, cospe no chão que se abre em fenda. A terra e ele também não se amam tanto. Afinal, a quem ele não enganou?
- Venha logo e vamos com isso.
O monstro estende a mão que seguro.
A gente gira e gira e gira e gira e então, de sopetão, em Marte estamos.
O ar é ruim, e o mundo engana. Mas enxergo além do vermelho e vejo os vizinhos.
Grandes como monstanhas, menores que formigas, são tão diferentes uns dos outros como os homens são iguais uns aos outros.
- Primo.
Diz o chefe deles, que já sabia de nossa visita desde que eu nasci.
- Primo.
Respondo através de Naiá.
- Tu tem uns bichos besta contigo?
O marciano mostra os homens com desgosto.
- Eles vieram do céu. Desceram na minha oca. MMas o mau quem fez não foi eles, primo, foi tu.
- Eu?
- Não lhes ensinou a ver o mundo? Agora eles enxergam. Não o veem com os olhos falsos, mas aqui chegando...nãnã, primo. Você fez mal.
- Desculpe, primo. Que quer que eu faça?
- Leve eles, e lhes diga para não voltar, primo. Eles fedem muito.
- Farei isso.
- Vá então primo. E Saci...
- Que é, Buruncã?
- Se ainda quiser sua outra perna...
- Nâo. Uma me basta.
- Tá bom.
Os marcianos trazem os homens, com eles, duas mulheres.
Percebo que eles não estão bem.
- Fez mal a eles, primo?
- E precisei, primo? Eles viram por debaixo do vermelho e se encantaram com o azul, primo. Acho que quebramos eles. Mas acho que tem conserto.
- Vamos ver. Leva a gente, Saci.
- Agora, já.
E o Saci abraçou a gente com seus braços enormes. As mulheres gritaram, os homens se mijaram e fomos.
Chegamos antes do almoço. Eu estava com fome.
Ofereci comida aos "astronautas", eles comeram, sem saber bem o que estavam fazendo.
Depois, levei o Saci para conhecer a Iara. Ele a amou e morreu.
Levei os homens para suas casas e fui de novo ao prédio das bandeiras.
Ninguém gostou do que ouviu.
Voltei pra nossa aldeia. E para evitar que nossos primos ficassem irritados, pedi ao chefe da tribo e fui ter com Boi-Tatá.
E é por isso que o homem não saiu desse planeta.
Eles fazem as naves e Boi-Tatá lhes toca fogo.
Ainda há quem tente, anos e anos depois, mais noites e dias do que me importo em contar.
Mas é para o bem deles.
Manter eles assim, em suas terras, em sua reserva, sem que incomode os primos.
E nós, aqui, vivemos em paz.

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