June 12, 2012

Eu não amo vocês


A cidade costeira amargava outro dia sujo.
A praia, servida de tubarões e esgoto, ainda era a maior beleza durante a noite recifense.
A rua era escura e desolada.
Perfeita.
Ele gosta de lugares assim, escuros. Isolados. Puxou ao pai, o mais taciturno dos mortais.
Até os amigos de seu pai brincavam, lhe chamavam de "corvo". Mais tarde, a brincadeira mudou..."corno". Mas as indiscrições de sua mãe não combinam com essa noite.
Dia dos namorados. Uma data tão fabricada quanto a ideia de felicidade.
Para ele, era claro: as pessoas confudem prazer com a idílica noção de felicidade. Esta, não existe. Se pode estar "contente", mas "feliz"? Tolice.
E ainda assim, aqui está ele, esperando por ela.
A mulher que lhe orienta. Seu referencial humano. Que lhe atormenta na busca por um campo comum, em que ele possa estar contente sem ganas de matá-la. O irônico, é que, de fato, lhe aprecia. Sua beleza, inteligência. Mas sua humanidade as vezes o frustra.
Isso lhe permite, ou exige, um tom de estranheza. Ela quer, pede, deseja um "eu" que não há. Então vagam juntos pela cidade, de braços dados, carinhosos, mas eles se pergunta até que ponto ele suporta isso, essa farsa de humanidade, essa identidade trocada, quando ele só quer estar metido nela ou em seus estudos, sem essa embalagem de "humano" que todos fazem tão absurdamente necessária.
Ela está atrasada. Ele acha estranho. Talita nunca se atrasa. É talvez a única coisa mecânica nela, sua necessidade, quase primal, de defender-se do mundo com os ponteiros do relógio, modelando seus horários de acordo com uma necessidade de estar e sair quando deseja, mas sabendo antes, programando, seus padrões.
Foi ela quem escolheu o restaurante, a rua.
Na sua tentativa de o "humanizar", Talita busca, com frequência, aplacar seus demônios internos. E sua aceitação, ou percepção da real natureza dele, só garante que ele queira, mas do que nunca, afastar-se dela.
Eles vivem nesse constante atrito de retalhos de seda.
Ela finalmente chega. Pela primeira vez, a vê em desalinho.
Ela olha nervosa para ele e segue para o restaurante, carregando uma caixa de madeira que ele nunca vira antes.
- Talita?
E ela o ignora, passando por ele com passos rápidos e curtos.
Irritado, olha para o carro e cogita se não deve simplemsente ir embora.
Balança a chave nos dedos. Olha para ela se afastando, e a ideia do sexo é o maior argumento para não decidir nada ainda.
E guarda a chave. Afinal, ele percebe, foi a primeira vez em mais de um ano que ela não o tratou com carinho. Ele está curioso, e ao mesmo tempo, admite para si, que desejava que ela tivesse sim, algum traço de personalidade mais forte.
Ele a segue para o restaurante.
O Dragão do Mar.
"Mais clichê impossível", ele pensa.
O restaurante parece chinês, mas é também japonês. Talvez até, malaio. De fato, ele não duvida quando pega no cardápio e nele há várias línguas, pelo menos três que ele não sequer reconhece.
Talita aparece, vinda de dentro da cozinha.
- Oi meu amor, desculpe.
Ele quer fuzilar a garota com o olhar, mas se contém. Sempre se contém.
- Não se preocupe.
Só agora nota, seu cabelo está molhado. Quando ela senta-se ao seu lado, sente o forte cheiro de mar.
- Você foi a praia?
- Fui, fui sim. Hoje é um dia especial. Muito especial.
Ele agora estava definitivamente intrigado. Ela não estava em seu normal.
- Porque é Dia dos Namorados?
- Não...não.
Ela sorri.
- Vai fazer mistério?
- Amor, tem haver com minha religião. Lembrei que você odeia falar em religião. Vamos deixar assim então, tá?
- Tá bom.
- Eu adoro esse restaurante. Se incomoda que peça por nós dois?
- Não, não.
E ele não se incomoda mesmo. Jantar fora é uma dessas convenções sociais que sempre lhe embaraçou. Só o faz porque é obrigado. Quer livrar-se logo de tudo e sair dali. Escuro ou não, algo o incomoda.
Agora, só agora, ele percebe, é o cheiro do mar.
O cheiro no cabelo dela, o cheiro que impregna o restaurante.
Nunca havia lhe incomodado antes.
Agora, o impulso é de levantar-se e sair logo dali.
O que é, ABSOLUTAMENTE ridículo. Controla-se e fica.
Ela pede Sushi. Ele não gosta nem desgosta.
Comeu poucas vezes, sempre com ela.
Ele esperava em silêncio. Ela não se incomodava, ou fingia bem.
Ou, só agora lhe ocorreu isso, ela também preferisse assim.
Tavez também preferisse não conversar sobre sua família.
Trabalho.
Religião.
Vida amorosa anterior.
Ele lembra dela iniciar os assuntos, mas ele sempre a cortou, e ela, obediente, aquiescia sem voltar a falar sobre isso.
Seria uma estratégia, ou ele, como quase sempre, tirava a coleira de sua paranóia bem criada e se deixava levar em devaneios?
Pelo sim, pelo não, abruptamenre, pergunta:
- Porque é um dia especial?
Ela olhou confusa. Ele quebrou, de uma única vez, duas barreiras.
Mas ela sorri. Olha para ele, pega suas mãos.
- Porque hoje, meu amor, as estrelas estão alinhadas. Sabe de quanto em quanto tempo isso acontece?
- Não...
- A cada um milhão de anos!
Ela sorri. Encantadora. Com o enjoado cheiro de mar.
E chega o sushi.
- Vamos, coma.
Ela diz, não esperando por ele.
Polvo. Ou algo como polvo. Algo verde.
- È bom?
- Hum hum.
Ele prova. E sim, e bom. O gosto é bom.
Mas a sensação de estranheza, de ALGOESTÁERRADOCORRADAÍAGORA, o fez levantar-se por impulso.
Ela olha para ele. Pela primeira vez, sente ela lhe olhando de forma reprovadora.
- Sente.
Ela diz, dura. Ele senta.
- Por favor.
Ela completa, doce.
E o beija.
Nunca sentiu tanta excitação antes.
A boca dela o inflama. Cheiro ou não, ele tem vontade de penetrar nela ali, na mesa do restaurante e, domina por uma vontade absurda, a segura com força e quase a empurra para mesa.
E sente algo em sua boca, além da língua.
Algo vicoso, ágil, que se move matreiro.
Ele tenta se soltar do beijo, ela o aferra.
Ele é duas vezes maior que ela. E ela o segura como feita de aço.
A coisa se enrrosca em sua língua.
Ele percebe, dentro de si, movendo-se.
Parece encontrar-se com outro pedaço seu, o outro sushi, dentro de si.
Sente as coisas mexendo-se, numa paródia do beijo que Talita não o deixa largar.
Ele a morde, tentando arrancar-lhe a língua.
Ela o empurra.
Algumas pessoas no restaurante se viram, olham para eles, ma sorriem.
Todos, todos, pediram o mesmo "sushi".
E ele se dobra de dor.
- O que você fez comigo???
- Cthulhu F´tagahn!
- Hã???
- Feliz dia dos namorados, amor!
E sente seu ventre se mexendo, e vê, pelo canto do olho, uma enorme sombra...
Erguendo-se do mar...
Cobrindo a lua...
Devorando a razão...

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