September 26, 2012
Corpos Celestes
O trabalho é cansativo. Foi planejado assim.
Eu sou da turma das 11.
O dois sóis brilham com raiva durante boa parte do tempo.
Ou sou apenas eu que imagino essa fúria?
A máquina apita.
Coloco mais da massa branca e fria em sua boca, aperto os botões na sequência, acompanhando processo pelo marcador de metal.
A linha de montagem segue até ser engolida pela escuridão.
Vejo as turmas das horas anteriores saindo, exaustas.
Na linha de montagem, continuamos firmes.
Os sóis, longínquos, pouco me aquecem.
E o frio é intenso.
Fazemos o trabalho do lado de fora.
Acho que é para lembrar que, se tentarmos fugir, não há para onde correr.
Onde ir no meio do dia que é negro, na neve que gela, na pradaria vazia?
Meus braços, dedos, seios, pés e até quadril, doem.
E surge então Lunara, o planeta do qual somos lua.
Antes de começarmos a suar, somos chamados para dentro.
11 horas disso, com rápido intervalo para almoço, banho e, ao fim, sauna.
Não há conversas. Não olhamos umas para as outras.
O apito da máquina não deixa e se ignorado, logo chegam os guardas.
Não há violência. É contra nossa cultura.
Mas qualquer é melhor do que ficar em nossa cela.
Para onde vou agora.
Vejo algumas meninas da turma das 12, uma delas, irritada, não faz nada na linha de montagem, apenas olha.
A máquina apita.
E apita.
Estridente, agora brilha e vejo dois guardas indo na direção dela.
Ela tenta dizer algo.
O guarda canta.
E ela cai, catatônica, na neve suja.
A sauna é barulhenta. Somos empurradas umas contra as outras.
A passagem aqui é rápida, apenas o suficiente para uma limpeza e aquecer nossos corpos.
Suadas, caímos na piscina de água morna.
O prazer é mínimo. Desconfio que só o fazem para nos deixar mais relaxadas.
Olho para minhas companheiras.
Mulheres de todas a idade.
Criminosas, somos todas. A nosso modo.
Todas, de alguma forma, buscaram a ciência.
Lembro de algumas das que estão aqui, de vista.
Mas eles são cuidadosos. Muito cuidadosos.
Não há nenhuma amiga no mesmo turno que eu.
E amigas não permanecem no mesmo turno ou prisão.
Não por muito tempo.
Da piscina, vamos para a pequena cela. Não é muito maior que um caixão.
Eu me deito e olho para o guarda.
Imagino se ele sente algum remorso.
Sua voz é linda.
E ao cantar, o cristal faz seu trabalho.
Não, não dormi.
Não é esse o grande castigo?
Por 13 horas estarei aqui, acordada.
Só.
Presa dentro de meus próprios pensamentos.
Absolutamente alheia ao que acontece com meu corpo.
Que sei, por experiência, será bem tratado.
Diferente da primeira noite.
Em Chuva de Estrelas, é raro, mas ainda há estupros.
E se fala o pior possível dos ecumênicos.
Mas não, nunca houve nada assim aqui.
Os guardas nunca sequer me tocaram.
E não precisam.
Nós nos quebramos o suficiente, sem ajuda alguma.
A noite é eterna ou assim parece.
Como resumir horas assim, quando não há pontos de referência?
Passo eu aqui presa, em mim mesma.
É horrível. Indescritível. Mesmo em momentos logo antes ou após o sono, há
referenciais palpáveis. Tato, som, cheiro.
Nesse caso, sou apenas uma consciência, plenamente desperta, que ignora tudo.
Só em mim mesma.
E pensar que usamos isso como punição por mais de 800 anos.
Nunca imaginei que fosse assim, tão cruel.
Em horas assim, lembro de minha mãe.
Ela não era ninguém.
Nos criou, colhendo rochas em Escarlana.
Nosso pai morreu ainda, colhendo pedras do céu.
O céu.
Rege quase tudo em Chão de Estrelas.
Onde moramos, do que e como iremos viver, nossas mortes.
A pedra, dizem, partiu meu pai ao meio.
Nunca o vi morto. Minha mãe não quis.
Odeio passar as noites assim. Lembrando de tudo. E não há mais nada a fazer.
Presa em mim em uma cela sem grades.
Não é assim que fazem nos outros mundos.
Sou que em Tiara, não é muito diferente daqui.
Tiara...nunca mais viajarei para lá se depender dos ecumênicos.
Tudo porque eu queria viajar. Não para os outros mundos, mas para a própria Lunara.
Lembro, quando morreu meu pai, jurei: um dia irei até o planeta do qual somos lua, descobrirei porque faz chover em nós as pedras do céu.
Tolo desejo de criança. Ou são, todos os desejos, tolos?
Não sei. Eu queria poder dormir.
Lembro como se fosse ontem.
Enxerguei algo na superfície de Lunara.
Era rotina. Observava, como se observou por séculos, sua superfície.
Astrônoma, era isso que mais fazia.
"Tentar compreender o universo além do canto", palavras de minha formatura em Ben-heran.
Compreender o universo.
Não passava porém, de algo todo. Meu trabalho consistia em realizar pesquisa para as ligas de coletores, identificando chuvas que cairiam em suas regiões, quando deveriam ir colher rochas, e quando não deveriam.
Lógico, essa informação era importante também para as cidades, para toda a logística, mas quem me pagava eram os coletores.
Mas naquele dia, o que vi foi diferente. Uma lente.
A lente parecia se mover na superfície, mas estava próxima ao que parecia ser, um corpo de água. Um grande, enorme lago. Quase tão grande quanto o de Tiara, eu diria, mas esse, tinha essa lente, que é só vista em ponto de passagem pequenos.
Lembro de meu espanto.
E lembro de ser detida, interrogada.
Mas isso foi depois do choque.
Olhei no dia seguinte e continuava lá.
Escrevi um relatório. Enviei ao corpo de maestros e para os professores de Ben-heran. Dois dias depois, houve a revolução.
Os ecumênicos tomaram o poder tão rápido, que houve pouca reação do governo. Sequer conseguiram fugir.
Eu, vermelha, braços pintados de azul, fui logo presa.
Os ecumênicos tem pouco amor do Escarlana, sua forte história em favor de um estado laico.
E meus diplomas, medalhas, notas, tatuadas nos meus braços, em nada ajudaram minha causa. Aos seus olhos, sou tão ruim quando uma suicida.
Vai fazer um ano. Eu sei. Eu leio os astros como palavras em pergaminhos frescos.
Certas verdades não se podem esconder.
Já vi algumas mulheres enlouquecerem.
As noites sem sono, o universo sem sonhos.
Elas enlouquecem e não-violentamente, a prisão nos mata.
Algumas se negam a comer. Outras, enfiam a cabeça onde deveria ir a matéria branca das máquinas. Outras, ainda, se afogam nas piscinas.
Engraçado..nenhuma tenta fugir para a noite e o frio. Nunca vi.
Não serei uma delas.
Nas noites em que estou, presa em mi mesma, eu sonho sem dormir.
E persevero.
Pois eu prometi a mim mesma: "Siri, um dia você sairá daqui e dirá a mundo o que muitos temem: não estamos sós."
E quem sabe, não irei eu mesma até Lunara, deixar para trás a lua e finalmente ver o mundo.
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