October 08, 2012

Ao deitar


- Você vai morrer só.
- Carla?
- Você vai morrer só.
- Eu não estou achando isso engraçado.
- Você vai morrer só.
- Você é estranha, Carla. Eu...Ei! Meu olho! Você é louca!
E essas foram minhas últimas palavras para Carla.

Uma semana depois ela cometeu suicídio. Nunca li a nota que ela deixou, mas, anos depois, o irmão dela deixou bem claro que a família me culpava pela sua morte.
Eu, que nunca sequer escolhi lagosta em restaurante.
O engraçado é que, estou aqui hoje, nessa situação patética, por causa de Carla.
Alguém que se matou faz 20 anos.

Pelo menos não está chovendo.
Apague isso.
Pelo menos não ESTAVA chovendo.
Porra, Carla.
Drip.
Drip.
Drip.
É, em Londres, até as gotas que caem o fazem em inglês.

No Brazil, tudo azul. Ou me dizem pelo celular. Devem mentir. Só querem me ver ainda mais mortificado.
20 anos atrás. Ela tinha 17. Era abril. Eu estava de azul. Ela vestia uma saia. Fazia sol. Janaína sorria. Haviam gritos. O colégio estava cheio. Meu olho dói ainda hoje.
Chove lá fora e aqui, faz tanto frio.
Não fui ao enterro. Visitei seu quarto depois. O pai entendia, acho. Havia fotos.
Muitas, muitas fotos. Ela dormia e a última coisa que via, era meu sorriso. Acorda comigo a olhando, não importava onde abrisse os olhos. Doidinha de pedra. Não fazia ideia.
Deus abençoe as pontes de Londres.
Mas odeio mãos frias.

O homem é azul. Ou quase.
Parece Nick Cave.
- Hello.
- Hey. I want to meet with...
Ele É Nick Cave. E sorri. Medo.
Isso está ficando estranho.
Ele me entrega uma nota. A caligrafia de Carla está nela.
É, eu conheço a caligrafia dela, dá licença? O pai dela me deu seu caderno. Estava cheio de cartas para mim.
E algo mais.
Nick Cave vai embora, segue na chuva. Ouço um pedaço de Red Right Hand e estremeço.

As letras, rabiscadas, fazem pouco sentido.
Cristiano, para se livrar da minha maldição, visite Shallot, adoeça, lá tem uma lady. Devore, mas não perca a cabeça, essa é outra história.
Mulheres nunca fizeram sentido. Não poderia achar que mulheres mortas fizessem.

Óbvio. Shallot não existe.
Eu deito no hotel e olho para o teto. Tomo algumas pílulas e tento descansar. Não dormir. Dormir é Carla.

A manhã ainda é chuva. O sol é que nem cimento. Cinza claro.
Não dormi.
Pesquisei.
Continuei sem entender porra nenhuma.
Ela quer que eu me afogue? Como isso vai me curar de minha maldição?
Diabos, Carla.
Porra de Londres.

O dia, claro, é maravilhosamente frio. Meu saco se esconde com tanto medo que me pergunto se ainda tenho bolas. Não que tenham muito uso. Carla cuidou disso.
Ando na cidade como um retardado. Invisível.
Tão longe de conseguir o que quero e sei, é também tão simples.
Como foi ler seu caderno, com prosa, poesia e encanto.
Ou bruxaria, quem sabe?
E presa ficamos, eu e ela.
Pobre sucubus.
No hotel, finalmente durmo.

Ela me suga, me faz cavalgá-la e acoitá-la. Dominado, a domino, sem controlar quantas vezes a penetro. O mundo a nossa volta é sempre o mesmo. E o ignoro para não ter de voltar a terapia. Não há nada de remotamente erótico no que nos cerca. E seis olhos parecem gravar obscenidades em minha carne. No fim da noite, como sempre, ela sussura: "me liberte"

Acordo exausto. Claro.
E meu pênis, flácido, é o humilhante lembrete que ela sempre me deixa, desde de meus 17 anos.
Não levanto antes do almoço.
Quando desço, minha pernas ainda tremem.
Ela sempre acaba comigo.

A comida é diferente, picante.
E minha garganta fecha.
O gosto não é de alho.
Não sei se chego a dizer um desesperado "what is that?"...
mas ouço uma resposta de um aperreado: "shallot"

O hospital é calmo.
A noites não. Logo os médicos notam o padrão, mas não sabem lidar com isso.
A alergia ao alho quase me matou. Será que era isso?
Morrer só, engasgado com alho esquisito numa terra estranha depois de seguir instruções estúpidas para chegar aqui?
Carla não responde. Só me devora. Pouco a pouco, definho.

Quando ela chega, é tarde. E de susto, me acorda.
É Carla.
E não é.
É como se fosse.
Por um instante, tenho vontade de lhe matar, e ao mesmo tempo, me sinto teso.
Ela não é Carla. Ela tem minha idade.
Conversamos.
O romance é rápido, o tesão imenso.
A paixão, brutal.
E desatento, me perdi do que vim buscar.

Ela chega uma noite, quando a outra Carla, que se chama Kaytlin, dorme.
Cego de amor, olho com desdém para sucubus, do alto de meus sonhos sombrios, para o inferno de onde ele vem se aproximando de mim.
As escadas de corpos se rompem a seus pés.
Ela caminha sobre as chamas negras.
O cheiro de óleo é forte.
Minha coragem se vai com a urina que escorre livre por minhas pernas.
Carla olha para mim, em misto de tristeza e ódio.
- Será que você tinha de perder a cabeça por ela?
Ciumenta, me castiga e antes de acordar, peço por mais.

Deixo Kaytlin na manhã seguinte.
Assombrado, volto ao Brasil.
Ignoro os meandros que me levaram para tão longe, para tão pouco.
E me deixo enfim gastar-me, noite após noite, sem amor ou descanso.
E um dia.
Morro sozinho.


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