November 03, 2012

A Cura


- Bom dia, no que posso ajudá-lo?
- Em nada, acho.
- Entendo... Mas o que o senhor procura?
- Suicídio.
- O senhor tem certeza disso?
- Sim.
- Quarta sala a esquerda.
- Obrigado.
O corredor é longo e bem iluminado. Não há sinais, quadros e nenhum obstáculo. É apenas isso: um corredor pintado de branco, bem iluminado, com portas de um lado e de outro. Nada entre ele e seu objetivo.
rcrd.7235 caminha decidido. Não traz nada consigo e veste roupas leves que ele mesmo fez. Prática comum entre os que preferem evitar propagandas. E sendo assim, rcrd.7235 não percebe que até mesmo isso, o bombardeio massivo de conceitos e produtos, é ausente nesse corredor.
A quarta porta se abre para recebê-lo. É uma pequena sala, igualmente branca, mas nela há até mais luz, vinda de duas telas que imitam janelas, em duas de suas paredes. Entra na sala hexagonal e sem fazer cerimônias, senta-se na cadeira oposta ao da outra pessoa. Nota então uma terceira parede usada como tela, mostrando o programa político do iluminado eleito.
Ele olha para a auxiliadora, que sorri e fala:
- Bom dia. Em que posso ajudá-lo?
- Já devia saber, não?
- Eu não posso supor.
- Suicídio.
- Algum motivo especial?
Ele podia citar umas duas dezenas, mas olhou bem para a mulher e decidiu não lhe dar nada que pudesse evitar.
- Não, nenhum.
- Porque quer se matar?
- Eu tenho de responder isso?
- Não.
- Deseja beber algo?
- Não.
Ela se levanta e pega em uma das paredes, em um recipiente embutido, uma garrafa, copos e uma superfície, que deixa a meio caminho entre ambos, mas não entre eles.
- Eu vou beber. Fique a vontade se quiser também. É uma bebida leve.
- Obrigado.
- Quando decidiu morrer?
- Eu reluto, faz algum tempo. Eu estava em Europa. Em Torricelli-18.
- Entendo. Não houve sobreviventes em sua família?
- Nenhum importante.
- Sinto muito. Já havia pensando em se matar antes?
- Só no banho.
- No banho?
- Sim. Eu desligo o input no banho. Gostaria de nunca ter de ligar novamente.
- Existem alternativas.
- Eu sei. Admito: gosto do conforto das cidades.
- É uma escolha.
- É, eu sei.
Ele se serve da bebida. Nota que é alcoolica, mas fraca. Muito saborosa.
- Exaustão social, desligamento familiar. Mais algum outro motivo?
- Ela me deixou.
- Foi um relacionamento longo?
- Não.
- Intenso?
- Não exatamente. Mas após Torricelli-18, ela se tornou muito importante para mim.
- Emocionalmente? Sexualmente?
- Ambos.
- Não havia chance de retornarem?
- Não.
- Algum outro motivo?
- Estou cansado. Me sinto velho. Nada me surpreende. Acho que é hora.
- Com sua permissão, posso puxar sua ficha? Gostaria de confirmar as informações que você relatou.
- Sim, sim, claro.
Ele espera enquanto um dos olhos dourados dela emite uma fraca luz cobalto.
- Apenas 300 anos. O senhor mal atingiu o limite legal.
- É, eu sei.
- Tem certeza que é o que deseja?
- Não.
- Não?
- Acho que conversar a respeito, com alguém, me ajudou. Obrigado.
- É uma técnica antiga.
- É?
- Sim. Alguns milhares de anos.
- Bem, ainda funciona. Obrigado. Que caminho eu tomo para sair daqui?
- Me desculpe, rcrd.7235, mas não é possível.
- Como?
- Nossa conversa foi mera formalidade.
- Não entendo...
- Quando o senhor re-afirmou sua intenção para a atendente, o suicídio entrou em andamento naquele ponto. A bebida foi apenas o catalisador para o que respirou no corredor. Me desculpe... Afinal, com superpopulação, as demandas dessa sociedade exigem cidadãos motivados... Obrigado por ter participado de seu questionário final. Agradecemos seu feedback.
Sua voz rebate nas paredes da sala, enquanto o homem que foi rcrd.7235 desaba da cadeira, em um último sonho e então estará morto.
Como ele pediu.

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