November 11, 2012

Edgar Allan


Vergonha.
O vômito sobre meus sapatos é só mais uma das indignidades a que ele me impôs.
A cabeça balança, como que infestada por grifos.
Maldito William. Não posso esperar que haja outra forma, seu caráter já se mostrou vil, senão, até mesmo profano.
Não menores foram meus crimes, bem sei. Enterrando a verdade de todos, escondendo a nossa horrível, dupla existência. Contribui para seus excessos, permiti sua delinquência.
Tentar envenená-lo não fora o mais cavalheiresco dos gestos, admito. Se eu tivesse morrido então, mas a intoxicação fora por demais solidária. E ele, novamente vingou-se ao conspurcar minha honra. Helen era tudo que podia desejar no momento, podendo eu finalmente ser feliz após Virgínia... Especialmente sem sua interferência, William... Não me recordo de atos decentes de sua parte, mesmo sabendo que meu irmão é um médico bem sucedido. Irônico, claro, já que teima em odiar-me e destruir minha vida.
Destruir... Se esta não era a a maior habilidade do seu outro, assim lhe parecia.
Afinal, fez sumir os relatos e registros de nosso nascimento, quando o médico, estupefato, quase nos deixou cair, ao ver os gêmeos tornarem-se um.
A dor de escrever o palíndromo sobre o falo, é preço pequeno a pagar contra o vilão.
O velho cigano fora claro, seja ele realmente alquimista ou não, suas palavras ressoam uma cor de verdade e se diz que isso irá eliminar a transferência, tornando impossível a bilocação, pouco é o sacrifício de um membro. Inútil este tornou-se pela existência do próprio William, bem sei! Assim também me assegurou o cigano ao me examinar com lentes estranhas e me fazer respirar vapores medonhos.
E sua culpa estava inscrita ao deitar-me com Virgínia, quando era sim, ele, William a possuir minha esposa... "Não sinto o mundo sem você, Edgar", confessou-me em carta.
Como se a traição pudesse ser desculpada! Traição, que bem sei, planeja reproduzir!
Não!
Basta!
O sangue me escorre entre as pernas. Mas trago vinho, e comprei roupas no caminho. Ao menor gole, a bebida que William pode tomar de forma prodigiosa, aliviará minhas dores e me preparará para a vingança.
Pois eu sei, William está no trem.

O médico se encontra em outro vagão. Algum mais bem servido, certamente. Será que William sente o mesmo? Um enrijecer da espinha, nebular das ideias, bastando que estejamos próximos? Estaria Jano sentindo-se assim se separado fosse? Estamos predestinados a sempre, olhar cada um para um lado, buscar soluções tão diferentes?
São nossas bússolas morais tão distintas, uma norteando e outra despencando para um abismo de sandices?
E me importa tanto?
Culpados, ou fora o destino, de ter levado nosso pai a bebida e insanidade. E o quão seria normal ter um filho que se parte em dois e que junta-se quando as partes se aproximam? Pobre David. Me culpo por odiá-lo. Ambos meus pais, afastados e destratados por comportamentos que eles não entendiam, fosse a eles clara a natureza estranha que em mim se manifesta ou não.
E como não culpar William por isso? Porque teria ele de discutir com Allan, embebedar-se por nós, contrair dívidas de jogo em meu nome? Canalha, canalha, canalha, três vezes o fora, pela sua falta de honra, moral e irmandade.
Mas isso irá mudar.
O trem se move e eu com ele, um movimento em direção a um destino que libertará ambos da sombra do outro.

Fui um tolo.
Tentei tanto, tanto, alertar William sobre isso. Dez anos atrás, sofrendo com infusão de ódio por suas ações, escrevi William Wilson. Tornei tão pública quanto atrevia, nossa relação abominável, descrevi meus sentimentos tanto quanto pude e o que restou dessa confissão e ameaça?
"Poe", ele me escreveu, "você não irá me intimidar. Prometo-lhe, no entanto, visitar-lhe mais vezes", e assim o fez. Mal pude sustentar a mim e Virgínia nos anos que ela esteve mais doente, tão errático, ofensivo, era meu comportamento.
A caneta, muitas vezes me salvou de suas ofensas.
Percebi ao longo do tempo que, para William, escrever lhe assustava. O processo devia lhe causar particular miséria, pois nunca atrapalho-me a pena. O pouco que me resta então é o orgulho de que, tudo que escrevi, é de fato meu.
Achei que poderia mudá-lo, pois fui um tolo.
E agora, espero, o ópio me mate e a ti, William, finalmente...

...A dor é intensa e parece refeita. A minha frente, Poe. Eu. Como retratado em espelho, com roupas que não são minhas. O ópio não me causa efeito, mas a dor entre as coxas é renovada, como que abertas agora os pequenos cortes que inscrevem: Live not on evil. O cigano estava certo, mas que preço paguei por seu conhecimento?
Espero o trem nos deixar na cidade e deixo em um banco de praça. Admito, ainda tenho pena de meu irmão. Pena que não senti até estar nesse corpo, talvez? Teria William, abjeto sentimento por mim? Seria eu assim, tão abusado pelo destino a ponto que ele tivesse... Pena? Não estarei aqui para saber. Me basta essa relação.
Saio de Baltimore, onde deixei Poe. Não sou mais ele. Sou William. Não em espírito e pensamento, mas em corpo e capacidade, mesmo que me as memórias não sejam dele.
Não tardo a perceber o que tudo isso representa.
Oh, horror dos horrores... Me vejo incapaz de escrever o mais tolo verso. O pensamento não se reproduz no amor ou fúria da pena.
Tampouco posso exercer sua profissão, já que nada recordo de diagnósticos, doenças e drogas.
Me resta apenas aproveitar a nova vida e assim, tentar viver com minhas dores de outra forma.
Tal qual Caim, busco exílio em outras terra. Diferente dele, expulso a mim mesmo.
Até as palavras na língua que me trouxe ganha-pão, pouco que fosse, por tanto tempo, soam agora deploráveis aos meus ouvidos.
Onde buscar civilidade que desejo para me tranquilizar, afinal livre de meu tão caro algoz? Que seja a França então.
Lá, talvez, possa eu descansar de meus pensamentos mórbidos e esquecer que tive de matar um irmão.
Talvez até mesmo me curar dessa tosse que ele carregava, livrar-me da ironia de, ao fim de meus dias, me deparar com máscaras rubras em meus próprios reflexos...

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