November 06, 2012
Patocracia
Guto. Gustavo. Como um dia vou me perdoar por ser seu pai?
É tão difícil, tudo tão difícil.
Esse vento frio, esse chão traiçoeiro.
Será que um dia posso perdoar a humanidade? Será que um dia posso me perdoar?
Queria ser uma cabra. Nada fácil se mover entre o resto de um prédio e outro assim, carregando você nos meus braços, meu filho.
Pelo menos você está quente.
Belo pai você arranjou, não?
Bem, aqui é mais ou menos seguro. Acho. Pelo menos é mais ou menos plano e não está molhado.
- Não cai, tá?
Ele não vai cair. Não pode. Não depois de tudo.
Massageio meus pés.
...E pensar que já me orgulhei dessas bolhas.
Nenhuma bolha com sangue, e o fungo não tem comido mais dedos. Bom.
Tenho de procurar meias em algum lugar, estas já não servem para quase nada. Bem, paciência.
A maré vai subir logo... Bem, esse prédio está seguro por hora.
- Guto?
Ele ainda está muito cansado. Mas sem febre. Ainda bem, sem febre.
Não aguento mais correr e saltar.
Será que dá para deixar ele aqui? Não estou vendo nenhum pato.
Ridículo. Patos.
Lembro de como ria a respeito, tanto pelo absurdo, como de alívio. A primeira vez que ria após o tsunami que afogou e destruiu quase toda a cidade e tudo nela.
Gente, cães, ratos, e até mesmo gatos e cavalos, todos numa procissão para algum ralo do mundo.
Vi prédios racharem e caírem. Outros, simplesmente ruíram, pó, água, lama em sua base, como implosão planejada por um Deus raivoso.
Quantos morreram naqueles dias? Não sei o número oficial.
Não houve número oficial.
A tragédia no Recife não foi notícia aqui. Talvez no Planalto Central. Me contaram que Brasília, tão isolada, ainda resiste.
Por quanto tempo, não sei.
E depois de dias de horror, lá estavam eles: os patos.
Ignorados adornos, os animais comiam tudo e aí de quem tentasse comer um deles.
E o tempo está passando.
Acho que Guto vai ficar bem.
Desço com cuidado, a partir da parte mais inclinada do prédio, e entro por uma janela quebrada.
Cuidado com os cacos, homem...
Isso.
Parece que estou num quadro de Escher ou no gabinete do Dr. Caligari. Sinto o prédio se mover um pouco.
Bem, há sempre o risco. E onde quer que coloque Guto, vai ser assim...
Pelo menos aqui não foi saqueado ainda.
Exceto pelos patos, claro.
Ainda tem pelo menos algumas latas de comida, não muito oxidadas.
Mas quase tudo está debaixo d´água.
E a maré sobe.
Quando volto para Guto, vejo que ele está bem.
Fraco, mas bem.
Vamos lá, filho...
Bebe um pouco d´água, continua a dormir, descanse.
Amanhã nos vamos embora desse pequeno abrigo.
Mas vamos pra onde?
Que criança merece esse legado?
Um mundo que cometeu suicídio diante de sua ignorância, cegueira insistente que preferia acreditar em possessão demoníaca a ver o que estava diante dos olhos: o homem como responsável pelo assassínio do planeta.
Na mochila, um cobertor e mais jornal.
Em um deles, notícias sobre a falência do país.
Uma falência moral, ética, onde a moral e ética era usada para punir os desiguais, tão iguais a todos, exceto no que faziam que não puniam ninguém. Tanto barulho por nada e tanto silêncio para com o mundo.
Mas ninguém houve, das cidades, uma árvore cair. Exceto quem a derruba e esse não conta nada.
Patos.
Fomos todos patos, aparvalhados.
E mais uma noite chega a cidade de escombros.
Vale a pena viver, Guto, quando disputamos cada migalha com essas malditas aves, que sobrevivem, evoluem, quando nós estacionamos?
Vale a pena?
Diabos se eu sei.
Mas se cobre bem meu filho.
Ainda há fome por vir e bem sei, vai chover de madrugada.
Vejo as fogueiras acessas no topo das ruínas dos prédios.
E não tão longe, o grasnar dos predadores.
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