November 25, 2012

Rhamnousia


Enquanto lava os pratos ela cantarola. A água leva a sujeira, a gordura. Para ela, a água leva em suas bolhas, também o tempo. Tempo que consome, devorou sua família, restando deles apenas a sua mãe, que se encaverna no quarto sem luzes no fundo do apartamento.
Mas ela não quer pensar nisso. Pega a garrafa de vinho branco, abre, coloca numa taça e leva para a sala. E lá tem seu próprio horror com que lidar, e as horas não o diminuirão.
Ela o percebeu no banho, passando as mãos por entre as coxas, sentindo molhar os seus cachos, a umidez dos lábios que interrompem a água gelada do chuveiro lhe escorrendo pela face, sendo sorvida e matando ligeiramente a sede.
Não o sabia ainda se benigno ou maligno, mas já sentia antecipada dor. Não era o primeiro, nem de longe. Talvez o último, quem sabe? O amor a encheu de pavor. Como lâmina que surpreende no box, mas sem música de suspense, suspende ainda assim o ar que traga. Ela o ama.
Quem acha que a conhece, diz que é isso que ela busca, o sentimento de pertencimento, a escravidão voluntária. Seria só isso a sua natureza romântica, um enaltecer da inútil busca pela felicidade?
As pessoas falam tanto sobre serem felizes, conjecturam, cantam, louvam a seu respeito. Mas quem a conheceu de verdade? Ela sim, lembra dela e sabe que morreu num ônibus João Pessoa - Recife. A felicidade faleceu como que atropelada, mas era passageira que definhou na viagem. Dizem que, perdida, assombrou seu último amor, mas é mentira. Nada dela restou, nem esmaecido sorriso.
O amor é tão tosco. E de volta a cozinha, enxuga os pratos e aguarda. O fogo a esquenta, mas não evapora os seus medos.
Tira a comida do forno, parte miúda a carne, reparte mesmo o macarrão, junta as batatas em purê, e as leva com salada, para o quarto.
Não acende a luz. Sua inadorada mãe, tem luz própria. Ou assim ela diz, irritada com a janela, lâmpadas e velas. Ela opta pelas trevas. Não critica a mãe, mas tampouco deseja compreende-la a luz de seus próprios temores.
Deixa a comida, a beija na testa e sai do quarto. Um covil claustrofóbico onde a memória vai para morrer.
Mal lembra o que ia fazer quando volta para a claridade. Mas ele a persegue, e com aperto no peito, começa a se vestir para sair.
Ainda não é noite e ela tem de trafegar pelos desejos, convites, interesses, necessidades, insatisfações, angústias, pedidos... Uma deusa moderna que escuta as preces escritas em SMSs, e as que pode atender responde, teclando no que lhe parecem mesquinhos e brilhantes dentes negros e vermelhos, partes de um objeto profano, seu oráculo em tempos desumanos.
Sentindo-se suja, ela responde asseada aos amigos. E num misto de ansiosidade e querer, aceita o programa que lhe propõem. Ela sabe: ele estará lá.
Se despede da mãe. Promete voltar cedo. A resposta é indiferente. Para ela, parece dizer, que lhe importam pouco os astros do céu.
Veste-se com flores e chamas, que tomam a forma de curto e colado vestido. Invoca alguém que a leve, escolhendo para isso o nome que lhe parece mais auspicioso.
Chove. A viagem torna-se um navegar pelas trevas. Faróis cortam a escuridão para revelar grotescas formas das árvores, que em luta com o asfalto, crescem tortas e tristes.
A noite volta a ser quente antes do fim da corrida. Ela paga ao motorista após descer, que lhe cobra também de sua essência com indisfarçável olhar lascivo. Percebe que fez má escolha, mas se conforma. Já fez tantas, o que é mais uma para povoar o vale de erros que juntos já fundaram uma cidade?
E os olhares são muitos. Não é a mais bela, mas com satisfação, percebe não ser a mais feia. Enquanto procura pelos conhecidos, evita os caçadores, o contato letal com seus olhares firmes e sedentos, o vazio de suas línguas doces.
Em um bolsão de alegria, ela os acha. Bajuladores, galanteadores, invejosas, e entre estes, também os que são e os que acreditam ser, amigos fiéis, seus poucos adoradores. Cada qual, marcando e marcados pelo contato.
A despeito de seus temores, ela sorri quando ele se junta ao cardume. Eles conversam, se atraem, suas órbitas se alinham. Apenas ela bebe. Ele busca uma retidão, que ela sabe, se dobraria fácil com o álcool.
Na sua presença, há um porém. Se percebe acompanhada e só. Ele sorri, conversa, é caloroso, mas é ainda assim, contido. Age como se tudo que fizesse fosse sob suspeita. Teme ser apanhado em flagrante, mas esperneia sob a superfície com a vontade de realizar o crime, que sabe, será testemunhado.
- ________, precisamos conversar.
- Mas ________, não é isso que estamos fazendo?
Ela disfarça a tensão, mas o vestido é agora aparelho de tortura, tal como dama de ferro, a sufoca e perfura.
- Sim, sim. Mas é sério. Podemos ir para ali?
Ele aponta para a varanda. Ela sabe. Para lá ele a levará e irá lhe atirar o coração pela sacada. Pouco há o que fazer agora, é commedia dell'arte, e seu papel lhe foi entregue. Com um concordar de cabeça e sorriso falso, o sacrifício concorda em seguir.
Ao lado do parapeito, olhando ambos para a lua, tocam-se as mãos.
- ________, você sabe, gosto muito de você.
- Sim, ________, e eu de você.
- É, eu percebi...
- Mas... ?
Ele endurece um pouco. Nota o sacrílego sarcasmo, o veneno que respinga da oferenda que não devia reagir.
- Eu não quero continuar. Foi bom, mas não posso.
- ________, vai me dizer a razão?
- ________, você é mundana. Não faz essa cara, você sabe...
- Não, não sei.
O veneno é lança. Seus olhos fulminam. O sorriso pende como promessa de vingança que seus olhos marejados parecem conjurar.
- Você bebe! Se veste desse jeito. Essas suas amizades... E não tem nem mesmo religião, ________!
Ela recolhe as lágrimas com o dorso da mão e as atira em seu rosto.
- Apóstata!
- ________, eu?!?
Ele diz e tenta agarrá-la, mas em vão. Ela sacode suas mãos e sai apressada. "Mundana", de tantas coisas, isso parece a reduzir mais do que imaginava quando pressagiou a dor.
Seus seguidores a cercam. Nada ouviram, mas tudo advinham. Fuzilam ele com olhares. Os mais arredios, com adjetivos o atacam. Sentimentos se inflamam enquanto ela corre para a rua.
Seu ódio rompe a razão. Mundano é o raio que cai sobre a casa dele. Furiosa, espera uma condução. Mundano é o chão que racha, rasgando a inútil igreja. Irada, cansada de esperar, alça voo. Mundano é o coração que cede no peito dele, rasgado por unhas de mulher e o levando aos joelhos antes de morrer. Amarga, deixa a chuva cair, escondendo de si a cidade e a cidade de si. Mundana é a doença que se espalha na família dele, eliminando todos, um a um, pelos próximos três anos.
Ela chega em casa.
Molhada, vestido arruinado, sapatos perdidos, com desalinhado cabelo, busca a mãe.
E a velha sorri, reconhecendo de si em sua filha.
Presas, ambas, pelo tempo, no estado de busca e perda do amor.
Pois até as deusas são vítimas dos papéis ordinários que regem toda a gente.

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