July 22, 2013
C
- Trouxe o Cilantro?
- Cilantro? Tá dando o cu agora, é? Tá feito, deixa eu fazer as aspas com os dedos pra aviadar mais: "Chef"? Tá falando de quê, porra?
- Coentro... Você trouxe o coentro?
- Trouxe, porra. Pergunta idiota da porra.
- Tá bom. Coloca ali, olha. Eu gosto de manter a cozinha organizada.
- Por que você não coloca tudo na mesa? É enorme.
- E se ela derrubar os ingredientes? Não. Não quero correr o risco.
- Sim, peguei as barras de prata com seu amigo.
- Crômio.
- Crômio, prata... É tudo metal prateado.
- Confie em mim, são bem diferentes. Você pode ir ver se ela acordou?
- Ela tá gritando? Calígula tá latindo? Então não acordou.
- Coriander, vai ver, vai. Eu preciso me concentrar e começar a rodar o filme.
- Então por que não disse logo que era isso, porra? Você tá ficando cada vez pior, hein? Ei, tu vai comer isso?
- As bolachas? Não, pode levar. Se ela tiver acordado, tem comida pra ela, preparei e guardei na geladeira. Não dê bolacha pra ela.
- Tá bom.
O homem que fica na sala, imita gestos que vê na televisão. Imita a si mesmo, filmado em chroma key pela câmera, alguns minutos antes do seu parceiro chegar. Ele sorri, sabe que vai dar tudo certo. Tira logo o sorriso do rosto, com medo de errar algo, tão perfeccionista que é.
Respira fundo, se concentra na receita. Tem vários livros a sua frente, abertos sobre uma segunda mesa, onde também separou com grande cuidado os ingredientes.
Ele sente muita fome. Fica tentado a beliscar alguma coisa, mas sabe da importância do jejum. Divaga, lendo os livros que já estão marcados pelos seus dedos e mais uma dúzia de gerações de digitais. Quem começou tudo? Seu avô fez a mesma indagação em seu diário pessoal, o mesmo onde ele tentava aprimorar a receita, achar ingredientes tropicais que substituíssem os europeus, assim como um antepassado substituíra os ingredientes da África, e outro do Oriente Médio, e mais outro das estepes, e onde começou tudo? Ele não sabia. Mas sabia que devia seguir passo-a-passo, com um esmero de fazer inveja a um chef de Le Cordon Bleu.
Na cozinha, verificou os camarões, o capeletti. O molho, que tinha de ser agridoce. Ele já estava com água na boca. Girando a colher e a comida, ficava entre pensamentos e o relógio. Ia servir logo, só mais um pouco de paciência. Pensou na menina, um doce. Como um caleidoscópio, se viu lembrando da vigília, do rapto na saída do hospital, do choro, de como a amordaçaram e prenderam na casa afastada do centro da cidade, dos cinco dias seguintes, em que preparou ela para hoje. Ela vai sofrer muito, ele sabe disso. Ele tem experiência com isso. Não é a primeira, e ele espera, não será a última.
- Não sei como, mas ela comeu aquilo que você preparou.
- Fred, sua gentileza é impressionante.
- De nada. Você ligou pro pessoal?
- Não posso. Você sabe disso.
- Está bem, vou ligar.
As pessoas chegam meia hora depois. Já estavam esperando. Há gente de todo o tipo, mas o grupo é pequeno. Eles se acomodam em um quarto lateral que se abre para a sala, com a porta aberta. Ocupam cadeiras que Fred dispôs de maneira a verem a mesa e a televisão. Fred sai de novo da casa, e de dentro, se ouve sua voz falando com Calígula, acalmando o cão. Não demora e sua voz pode ser ouvida novamente, dessa vez, tentando acalmar a menina e logo depois, grita:
- Nicolau! To chegando!
Nicolau deixa os livros de lado e pega o giz. Espera que Fred entre na sala com o saco onde carrega a garota. O saco é feito de palha, como mandam os livros. Ele coloca a menina na mesa, retirando o saco como uma casca e amarrando seus braços e pernas. Nicolau não está esperando, mas ativo, riscando as estradas da sala com giz branco, tanto portas como janelas, isolando também com uma fina camada de giz, também os visitantes, meros e ansiosos espectadores.
Nicolau lava as mãos em uma bacia, olha para menina, pega uma faca e começa a cortar. Ela desmaia após os primeiros gritos, com a parte aberta, acima de seu peito. O sangue escorre pela madeira e Fred apara com bacias de metal, indo então para a cozinha conjugada e pegando as panelas ainda quentes. O cheiro do camarão se mistura ao ferro quando Fred derrama o sangue e a comida em um velho prato fundo, feito de crômio, que eles vão substituir em breve por um novo.
- Você está bem?
- Estou, Fred, é só cansaço.
Nicolau sua, abrindo ainda caminho pelo corpo da menina, expondo o osso da clavícula. Com cuidado, extrai um pedaço e o coloca no prato. A câmera filma tudo. Seu coração bate como um também de maracatu, um forte e grave som, que ele sente ecoando na sala. O jantar começa. Ele pega talheres e sente junto a mesa, onde a menina ainda agoniza. Na televisão, começa a surgir uma sombra.
- Cuma?
- É, é ela. Vamos, me ajude aqui.
Fred vai para o laptop e começa a aplicar na imagem uma outra. Nicolau pega o prato e oferece para o ar. Na televisão, a sombra segura o prato, os talheres, senta e começa a comer. Os espectadores cochicham, alguns gemem. Na justaposição, uma animação se comunica com a sombra, lhe ajuda a comer. O prato, a frente de Nicolau, vai se esvaziando. Quando termina, a sombra faz menção de levantar-se, mas Nicolau aponta para a menina. Cuma balança a cabeça. Ele insiste. A sombra se levanta. Nicolau mostra a televisão e a sombra vê a si mesmo, presa. Ela solta um grito, um choro estridente. Nicolau aponta novamente para a menina e Cuma se deita sobre ela. No quarto ao lado, os espectadores param de respirar em uníssono, aguardando. O corpo da menina se refaz, lento, a carne é reposta como um tecido que se costura, ela respira, seu coração bate. A sombra se levanta e aponta para a tela. Fred faz sumir as grades e Cuma vai com elas.
A menina olha assustada, apavorada, sangue ainda suja seu corpo, rosto, a cabeça sem cabelos. Mas há um reconhecimento ao lado do medo, um entendimento e ela não grita quando Fred a retira da mesa e a leva com cuidado para fora da casa. Nicolau chora, de exaustão e alegria e se volta para os espectadores. Eles também choram, alguns, ainda com medo.
- Foi isso que vocês fizeram ao meu menino?
Um deles pergunta, ainda sem saber o que sentir.
- Foi. Funciona.
- Eu sei.
E o pai abraça Nicolau, chorando.
- Os médicos não sabem o que dizer, ele está como novo, como se nunca tivesse adoecido.
- Fico feliz por isso. Me desculpem, mas preciso descansar.
Alguns ainda conversam um pouco e Fred os ajuda a ir embora. A experiência é brutal para ambos, sempre é. Assim como é para as crianças. Um dano colateral, mas que ambos julgam necessário no cumprimento de suas tradições. Nicolau sempre sente mais que Fred. Apesar da insistência de seu pai, ele foi teimoso. Demorou demais. De Débora, só lhe restam as fotos, e a lembrança do calor de seu sorriso.
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