André continua morto. Mas infelizmente, ainda paga aluguel. É a única razão para manter um celular ao seu lado, mesmo que longe o suficiente para fingir que é como os antigos telefones, algo que ele poderia se distanciar e ignorar.
Antes de ver quem ligou para ele de madrugada, André levanta, toma um banho frio, faz um enxágue bucal com algo que não seja listerine (muito caro) e prepara um ovo pro café da manhã (com apenas sal, manteiga está pela hora da morte (e ele sabe, ele já morreu)).
O gato mia da varanda do apartamento, oferecendo a ele uma comida mais consistente, mas André já assumiu que ratos, pelo menos do Recife Antigo, não devem ter sido aprovados pela vigilância sanitária. Ele faz um sinal de agradecimento, come o ovo e pega o celular para ir ao jardim ver o que o gato quer. Na sua pata esquerda está amarrado um pedaço de papel, mas ele verifica o celular antes de ler, decidindo ordenar as más notícias pela sua ordem de importância.
"Olá, Sr. André, tudo bem? Meu nome é Carolina, eu sou assistente de Paulo Miguel Netto, da Netto Construtora. Ele gostaria de conversar pessoalmente com o senhor e entrevistá-lo a respeito de um serviço."
“E talvez”, pensa André, “nem tenha sido uma má notícia no fim das contas”.
Junto com a mensagem, um endereço. "Ela mandou a mensagem depois da meia-noite? Acho que vou poder cobrar caro", pensou André, pegando o gato-pergaminho e o abrindo: "Precisamos conversar. Padaria da sua rua. Vou estar vestindo uma mulher de vestido verde e tênis vermelhos".
Depois de ler a mensagem, André pegou sua chaves, canetas, um caderno de bolso, colocou o celular em um bolso escondido na parte interior da calça, se equipou com a pochet pega-ladrão, saiu do apartamento, fechando a porta e o cadeado do lado de fora.
Chegou a padaria após alguns minutos de massacre solar, desapontado com os vereadores que não colocaram ainda ar-condicionado na cidade. Logo viu que uma mulher com a descrição enviada pelo Cavaleiro, estava lá. Ele não a reconhece, mas se aproxima e senta-se na mesma mesa.
- Bom dia, Cavaleiro.
A mulher termina de beber o café à sua frente e olha atentamente para André. Parece perdida por alguns momentos. Seu batom está borrado e olhos marejados. Por um momento, atira seu braço na direção de André e parecia que ia gritar, mas como que agarrada por uma imensa força invisível, congela e relaxa.
- Desculpe, André. Ela é nova.
- Eu compreendo, Cavaleiro. O que houve?
- Vi algo nas estrelas que me incomodou. Era sobre você. Achei melhor lhe alertar pessoalmente, André. Pois vi também uma oportunidade.
- Eu sei que sem enigmas você não conseguiria sequer proferir uma frase, Cavaleiro, mas nem todo mundo vive de sonhos e tenho um cliente para ver.
A velha múmia o olha com fúria por trás dos olhos da mulher. André teria medo se já não estivesse morto.
- Não irei me demorar, Fantasma.
A mulher abre uma daquelas bolsas ecológicas de supermercado e mostra pra André o conteúdo: oito vasos canópicos. André arregalou os olhos pensando no que tudo isso implicava e antes de abrir a boca, o Cavaleiro continuou:
- Não escrevi instruções, terá de pedir isso aos gatos. Ainda sabe como?
- Não me ofenda!
- Bom. Ainda há esperança. Em breve você irá se encontrar com vilões da pior estirpe! Ladrões de tumbas!
- Figurativamente...?
- Antes fosse! Ouça enquanto caminha nas ruas, entenderá o que digo. Leve os vasos. É uma oportunidade, André!
- Está bem, não se agite. Não quero ela lhe escapando e fazendo um escândalo aqui. Quem é essa, afinal?
- Matava gatos na vizinhança.
- Entendo. E obrigado, Cavaleiro. Eu assumo que, nos vasos...?
- Meus cavalos. Uma oportunidade, André. Por duas vezes, anulará o mal e fará o bem. Quem sabe, seu coração se torna mais leve?
- Duvido. Ando comendo muito processado. E farei o possível, amigo. Tenho saudades deles. Até mais ver.
- André! - disse a mulher, se virando pra ele - Não esqueça de levar uma espada!
O cavaleiro continuou a comer a refeição pela boca da mulher, que havia sido interrompida pela visita de André. "Velho maluco", pensou André, "eu não tenho uma espada!".
Ele seguiu até Boa Viagem, chegando ao prédio da construtora, quase ao meio dia. A demora não foi culpa do ônibus, do motorista, nem do engenheiro de trânsito, sequer do prefeito, e muito menos do absurdo número de carros por habitante da cidade, que uma dia teria de iniciar um financiamento coletivo para trazer o próprio Cerberus para Recife, afinal, as coisas ainda não pareciam ser claras o suficiente, né?
O saguão do prédio era acolhedor, diferente do que André esperava. Em geral, esses prédios anti-sequestro têm o mesmo calor humano que tubarões. Não teve problemas em entrar e logo estava no último andar. E sequer esperou muito.
Carolina o recepcionou e o apresentou a Paulo Miguel Netto. O empresário sorriu de forma sincera durante toda a reunião, mas para André, era claro que tinha vários esqueletos no armário. Bem, não necessariamente esqueletos, mas estava acompanhado de vários fantasmas. Isso não era comum, especialmente como se comportavam. Eles olhavam André com curiosidade, mas não falaram nada durante toda a reunião, o que era… Peculiar. Não pareciam também com raiva, mas André checou seus bolsos e só com o tato, percebeu a cabeça de alho que carregava contra mal olhado, ressequida. Depois disso, fez tudo para apressar sua saída dali.
O caso, disse o empresário e a assistente, era simples: a construção de um novo shopping, O Recife Novo, fora interrompida. Máquinas pareciam quebrar sem motivo, os trabalhadores relataram pesadelos e visões, animais atacavam os engenheiros (um foi mordido por um timbu e um outro, açoitado por pombos até sair do local), e até o clima no local imediato, parecia pior que o do resto da cidade. O empresário sangrava dinheiro com essa demora e isso lhe era intolerável.
Eles lhe deram um contato, o do médium que havia lhe indicado ao empresário, mas seu nome não era um que André recordava ter conhecido: Migueli Moura. Ele mandou mensagem para Moura e combinaram de se encontrar durante a noite, na construção. Queria ver o local com os próprios olhos e entender o que estava acontecendo.
Saiu feliz e quase cantarolando um “Friday, I'm in love”, pois com o adiantamento do serviço, que ainda não era muito claro, talvez um exorcismo, o morto-vivo foi até outra padaria para jantar. Não iria esbanjar, nunca se sabe o dia de amanhã, mas saber que vários amanhãs estavam seguros lhe deixava mais tranquilo. Procurou um estabelecimento mais adequado aos seus padrões do que a de um príncipe egípcio, e pediu um café com leite e um sanduíche.
Antes de ir para o encontro, ainda com a pesada sacola, lembrou da recomendação do egípcio e finalmente entendeu o que ele quis dizer. Procurou pelas ruas e prédios, pediu licença a um porteiro e se armou.
Mais tarde, quando desceu do uber (agora tinha algum dinheiro) na entrada para a área de construção, um caminho mal iluminado de barro, um declive, André logo foi cercado por vários gatos. E ele odiava o que tinha de fazer em seguida, pois iria arruinar a sua roupa, mas deitou no chão e deixou os gatos lhe cobrirem, comendo fios do seu cabelo, esfregando seus focinhos nas suas mãos e com suas garras, escrevendo instruções sobre ele, como quem amassa pão. Depois de comungarem com o fantasma, os gatos se esconderam nas trevas enquanto ele descia para a área onde estava a construção, com a sacola de compras e a roupa, agora, suja de terra e rasgada. Super na moda.
Não havia seguranças na parte de baixo. André não gostou disso. A despeito das circunstâncias, havia maquinário, equipamento e materiais, que poderiam ser roubados. Foram instaladas câmeras, e eram evidentes - além de haverem placas lá fora indicando a vigilância do local, caso essas passassem despercebidas. Mas só as câmeras, de fato, não afasta ninguém sem pelo menos um segurança.
E ele começou a ter companhia. Não eram muitos, mas eram velhos, mais do que isso, antigos. Ele gesticulou para que o pequeno grupo se aproximasse, mas falavam uma língua que não conhecia. “Indígenas?”, ele se perguntou. Era difícil enxergar eles, suas formas eram inconstantes e indefinidas. Haviam morrido a muito tempo. Tentou sinalizar que não iria lhes fazer mal, mas não sabia com certeza se entenderam. Haviam entre eles alguns mais fortes, mas estes estavam desconfiados apesar de serem, sim, amedrontadores. Sombras que exalavam uma força palpável e… Poltergáistica.
André decidiu prosseguir, aparentemente eles não o viam como uma ameaça e Moura devia estar logo adiante. Um gerador fornecia luz e aqui e acolá havia lâmpadas acesas. Uma espécie de barracão estava acesso. Acendeu um cigarro de fumo e deu duas tragadas que o fizeram tossir e continuou a caminhar, agora naquela direção.
Um homem alto, magro, lhe abriu a porta quando se aproximou do barracão. Olhou para ele espantado.
- André? - perguntou o homem, com um tom de incredulidade.
- Sim, eu mesmo. Eu escorreguei, caí e rolei um pouco o caminho abaixo, mas estou bem, não se preocupe.
- Tem certeza? Mas entre, e puxe uma cadeira.
André entrou e fez exatamente isso. O Barracão era bem iluminado por dentro e havia mais duas portas dentro dele. De uma delas, veio uma sensação que lhe lembrou Netto. Ele levou o cigarro novamente a boca e tragou novamente, tossindo. Ele realmente odiava fumar.
- Obrigado. Imagino que você seja Moura?
- Sim, sim! André, você não tem ideia do prazer que tenho em lhe conhecer! - disse o homem, sentado em outra cadeira, do outro lado da pequena mesa. O espaço não era grande, e havia ferramentas e material de construção por todo o lado, no chão, encostadas nas paredes ou em estantes improvisadas.
- Como assim?
- Eu sou uma espécie de connoisseur a seu respeito. - O homem sorria. Parecia ser um fã genuíno.
- Connoisseur? - André ainda estava tentando entender o que seria um especialista em si mesmo e não gostava da ideia. Sempre fora reservado e as atividades de seu grupo, assim pensava, secretas, mesmo que estas exigissem contato com pessoas fora dele e uma boca a boca em um submundo que lida com o oculto.
- Sim, eu sou um especialista em se tratando de você!
- Eu sei o que é um connoisseur! - Disse André irritado. “Diabos, nem uso instagram, eu sei ler!”, pensou para si mesmo.
- Perdão, André! Não quis ofender! - O homem chegou a se levantar por um momento, talvez com medo que André fizesse o mesmo ou fosse embora.
- Não, está tudo bem. Pode me explicar o que está acontecendo aqui?
- Claro, sem dúvida!
Moura, entre explicações e um olhar para André que o fazia sentir-se como um peru de natal antes da ceia, detalhou o que sabia: haviam escavado um cemitério indígena. De fato, não um “cemitério”, mas um local de batalha entre duas tribos, em que os mortos foram tantos, que não sobrou quem recolhe-se os corpos e todos ficaram ali para serem comidos por animais e apodrecer. Coisa que não faz diferença para muitos mortos, mas estes ficaram furiosos! E o desrespeito de ter o que ainda restava deles sendo despojado, até pulverizado por máquinas, em nada melhorou a relação da empreiteira com eles.
Enquanto Moura explicava, André pensava em toda a situação. Algumas coisas não faziam ainda sentido para ele. Esperava encontrar um grande perigo, mas Moura, ao contrário, era um “fã”, em suas próprias palavras. “Será que o egípcio, em sua ânsia por ver novamente seus cavalos, teria se precipitado?“, pensou. Não seria a primeira vez, mas havia algo errado. Ele sabia disso desde a visita ao escritório. Seria bom se o egípicio pudesse vir com ele, mas o ritual que iria realizar, atrairia a atenção sobrenatural a qual a velha múmia realmente não queria que estivesse sobre si.
Ele não achava que pudesse culpar o velho sacerdote. Talvez, pensou, essa seja a nossa grande vulnerabilidade, quanto mais vivemos mais temos medo de morrer. Afinal, os jovens têm potencial, mas nós temos História. E quanto mais essa se acumula, sabemos que quando finalmente for nosso fim, teremos de encarar questões desagradáveis: “será que algo valeu a pena?”, “será que fez sentindo tanta luta e esforço para, como qualquer outro, virar pó ou ser dissolvido no ar, evaporado como ordinário líquido ou extinguir qual simples vela?”...
E André sentiu, no limite do reconhecível, algo que percebeu antes. Tão tênue que teve dificuldade de reconhecer mesmo em memória recente. Um cheiro, um mal estar, nada excepcional, mas que lhe causava o sentimento de estranheza que teve no escritório da Netto Construtora. Sem pensar muito, enquanto Moura esperava que ele dissesse algo, tirou de seu bolso mais fumo e começou a enrolar em um cigarro.
O outro homem não gostou disso. Ficou alerta e um pouco do verniz de civilidade esmaeceu.
- O que você está tentando fazer, André?
- O que você acha? Eu não sei quem você é, mas eu sei que não se trata apenas de tirar os fantasmas daqui, exorcizar eles ou ajudar eles a encontrarem seus caminhos. Tem algo mais e nisso tudo e está atrás daquela porta.
Nisso, a porta abriu, e fantasmas saíram, cercando a assistente de Paulo do empresário.
- Carolina?
- Olá de novo, André.
Ela faz um gesto rápido com a mão e André logo está cercado de fantasmas que o seguram pelos braços.
- O que é isso? O que querem comigo? - Enquanto grita e se debate, André chama pelos espíritos que passou a invocar na última hora, espíritos de vício, sedentos, espíritos confusos e furiosos. A sua volta começa a se criar um pandemônio.
André não sabe como Carolina controlou os espíritos e o que quer com ele. Mas pra ele, está claro quem são os vilões que o Cavalo lhe alertou a respeito. Assim que consegue se desvencilhar, ele se atira no chão e tenta empurrar a mesa contra Carolina e Moura. A luta entre os fantasmas se intensifica, e ele se vê desviando de objetos voando pela salva e fora dela, atingindo a ele e também a Carolina e Moura.
- Você é louco, você vai nos matar!
- Talvez, mas o que vocês queriam comigo não parecia ser melhor, Moura!
- Moura, vamos embora daqui! - gritou Carolina, tentando empurrar a mesa, que André agora usava para manter eles presos no barracão.
O pandemônio começou a diminuir. Os fantasmas que ele chamou queimaram rapidamente a sua raiva nos gestos de fúria que trouxe caos ao barracão. Mas Carolina também perdeu fantasmas, talvez ele conseguisse resistir a ponto de saber o que estava acontecendo.
- Afinal, o que queriam comigo, Moura?
- Não é óbvio, André? Você. Não queríamos, ainda queremos. E seus fantasmas se foram, não? Não tenho suas habilidades, mas sinto que a presença se foi, quase que completa. Vamos comer você e nos tornar imortais como você!
“Necromancia, canibalismo? Acho que foi bingo.” - Pensou André começando a recitar um canto egípcio e tirando da bolsa a espada de são jorge. Os fantasmas logo se afastaram dele ao ver as folhas, o que também lhe custou algo. Afinal, ele não era apenas de carne e ossos, mas também de ectoplasma.
- Pare ele agora, Moura, antes que seja tarde dem… - A boca de Carolina permaneceu aberta, mas o som foi instantaneamente interrompido, enquanto André finalmente se levantava e continuava a cantar na língua que os gatos lhe implantaram na mente.
Os fantasmas ficaram confusos sem Carolina para lhes guiar, mas ficaram no local até André, quando pode pausar o canto, os espantou com a folha de espada de são jorge, a jogando no chão assim que eles se foram.
Posicionou então Moura e Carolina no chão, que não lhe resistiram e colocou os vasos canópicos próximos a eles. Retirou enquanto pronunciava encantamentos, os fígados, pulmões, estômagos e intestinos dos cavalos, Manoel e Natália, ao lado que seriam seus novos recipientes.
André sentia suas próprias forças sendo usadas no ritual e sua própria foma fluir, perdendo um pouco de sua qualidade humana, se indefinindo. Não era à toa que o egípcio temia o ritual. Ele sentia a fome do local onde os cavalos estavam e a resistência em lhes deixar partir, para voltar para o mundo material. Ele sentia que lutava contra bestas de lendas que muito precediam até mesmo os homens, mas não podia fraquejar ou seria, ele mesmo, sugado para esse reino de morte, onde todo dia seria devorado.
Quase ao amanhecer, terminou o ritual. Moura e Carolina agora se levantavam como Natália e Manoel, mortos anos atrás pelo Papa Figo. Confusos, mas agradecidos, levantaram sem esforço o corpo de André, que parecia querer de liquefazer e escapar pelas suas mãos.
- Obrigado, André - Disse Manoel. Natália, chorava em silêncio, ainda mal acreditando que fora chamada de volta do inferno, mas lhe tomava as mãos e deixava a carne, quase líquida, com carinho. - Ainda mora no mesmo lugar? - Perguntou Manoel, que teve com resposta de André um débil balançar de cabeça. - Entendi que sim - disse Manoel, sorrindo com a boca de Moura, que a cada segundo, passa a se assemelhar a sua.
Saindo do barracão, dois gatos passaram a acompanhar de perto o grupo. E André nesse momento, parecia não notar, mas os fantasmas de antes, já não estavam lá. Quem sabe, ele teria outro dia a oportunidade de os ajudar a achar seus próprios caminhos, e com sorte, fazendo isso, poderia garantir um ou dois meses de aluguel.