July 27, 2013

H


- Você vai mesmo dar o vinho pro cavalo?
- Por quê não? Até a égua da sua mãe já invadiu minha adega, não foi?
- Que homem estúpido. Quer me lembrar por que casei com você?
- Sou rico?
- Meio rico, não?
- Hilária. O que veio fazer no meu haras, Priscila?
- Negociar?
- Como assim, Priscila?
- Eu quero Hera.
- Fora de questão.
- Eu lhe devolvo tudo.
- Tudo?
- Tudo.
Os dois entram no estábulo. Os cavalos respondem ao nervosismo de ambos com alguma agitação. Ela odeia o cheiro. Ele também. Hermes não entrava ali desde a separação, sequer aguenta olhar para os cavalos, especialmente, Hera.
- Então, Hermes? Eu só quero o cavalo. Ele é hediondo, nunca soube por que você o manteve.
Hera é hermafrodita e isso sempre enojou Priscila, mas não Isabela. Ela sempre citava a égua como motivo para fazer biologia. Ele tenta segurar as lagrimas, mas não consegue. Mantém o rosto em um ângulo longe do olhar de Priscila. Pigarreira.
- Isabela a amava. Não é razão suficiente?
- Como? Você está falando sério?
- Sim, estou.
Ele funga e leva um lenço ao rosto, apagando as lágrimas. Se vira para a ela, desafiando a raiva que, conhecendo-a por mais de 20 anos, sabe que irá aflorar.
- Você não vale nada, Hermes. É isso, não? Uma piada? Uma vingança?
- Não fique histérica. Cansei de você.
- Não antes de que eu tenha cansado de você, meu amor! NUNCA BOTEI UM PAR DE CORNOS TÃO BEM BOTADOS!
- Fina, Priscila, MUITO FINA! Eu ainda grito mais alto aqui e não tenho mais de aturar sua maldita voz.
Ela respira fundo, tentando se controlar. Mal o reconhece. tanto ódio, tanto ódio e queria perdoá-lo mas... Não, não consegue. Será que ele bateria nela? Teria coragem? Não. Depois do que ela fez ele ainda não fez nada com ela. Porquê não? Isso a fazia odiá-lo tanto, tanto...
- Está bem, Hermes. Que ódio tenho de você, viu?
- Estamos quites então.
- Olha, vamos sair daqui, está bem. Ei!
- Não, não por ali, você vem comigo.
- Não vou por aí, Hermes, pare!
Ele abre a porta que dá para um dos circuitos de treino do haras. Ela vê o canteiro de hortênsias. Não parece que o fim da vida de sua filha começou ali. Hera pariu a morte de sua menina.
- O que você quer provar, seu idiota?
- Nada. Só quero andar aqui com você. Você quer algo de mim, certo? Então faça por onde.
Eles caminham pelo circuito. Ambos estavam vendo a menina, quase uma mulher, cavalgando. Mas o salto foi imperfeito. Priscila passou horas olhando aquele salto. Ela lembrava de cada detalhe, de cada movimento do cabelo da filha, de casa flexão do músculo do animal. Ela acordava, as vezes, ouvindo o relinchar.
- Tão homem agora. Mas foi tão covarde.
- As pessoas lidam com a dor de forma diferente, Priscila.
- Pessoas, talvez. Que bosta de pai você foi, Hermes.
- Bosta de pai? EU DEI TUDO, TUDO que ela queria! Vai ficar me cobrando por dias em que não visitar a menina em coma? Ela nem saberia que eu estaria ali!
- Como você sabe? COMO? Covarde. Sempre foi. Eu devia saber disso.
- Devia mesmo, tirei você da sarjeta, Priscila. Te livrei de um namorado que te espancava. Fui mesmo um belo de um covarde.
Dois empregados do haras olham os dois, mas mudam de direção instantaneamente. Os gritos eram parte do cenário enquanto eram ainda casados e ninguém gostaria de estar no meio do fogo cruzado. Nunca houve vítimas, mas ninguém se arriscava. Todos sentiam falta da menina. Ela vivia ali, sempre que podia, Isabela visitava o haras.
- É, foi um GRANDE HOMEM, né, Hermes? Um GRANDE HOMEM! Lembra quando ela foi pra casa? Quando ela voltou do hospital?
- Eu ESTAVA LÁ!
- Sim, estava... Sempre via um motivo para esticar no trabalho, sequer olhava para a menina. Eu ficava o tempo todo...
- ... E ainda teve tempo de dar para metade da cidade, não?
- Você vivia bêbado e drogado! Aliás, como anda a merda de seu nariz?
- O que tem ele? Não fui eu que corri para pegar herpes, Priscila.
Ela joga a mão contra seu rosto. O tapa bate no queixo, sem jeito. Ele a olha com ódio. Vira as costas e começa a andar.
- Hermes, pare. Desculpe. Me perdoa.
- Não é o que tenho feito sempre? Você não entende, não é?
- Não, não entendo. Juro que tentei, mas não entendo.
- Eu amava Isabela, Priscila. Bota nessa merda de sua cabeça, eu não matei nossa filha.
- Eu sei, Hermes, eu sei...
Ela busca a bomba de ar. Sabe que não tem asma, todos os médicos já disseram a ela. Ela tem hipocondria. Desde a morte da filha, se vê morrendo. Ele segura sua mão. Tem pena dela. Tem pena do quanto ela envelheceu. Todos morremos quando Isabela caiu. Cada qual de um jeito.
Ele sabia disso.
- Me solta.
- Claro. Mas pare com isso. Deve ser hereditário, mas pare de imitar sua mãe.
- O que ela tem haver com isso?
- Tudo, não? Não é só a ela que você escuta?
- Ela esteve mais presente que você.
Ele sabe que é verdade. Ele não viu a filha nos últimos dias de vida. Bêbado, drogado, mal sabia onde estava. Atendeu o celular com vômito na boca, no dia em que ela morreu. A voz odiosa da sogra, anunciando a morte de seu sonho.
- Sabe... Fique com a égua.
- Eu transfiro seus bens de volta, amanhã mesmo, Hermes.
- Não. Hoje. Hoje é o último dia que nós nos falamos, Priscila. Tudo precisa ter um fim. Não quero nada de volta. E não quero mais ver você. Pegue a égua e vá embora. Pode pegar um das caminhonetes com trailer. Só, por favor, vá embora.
Ele dá as costas novamente e vai para a casa. Não quer mais saber de nada disso. Não aguenta mais. Não aguenta. Chega na casa, vai tomar um banho. Logo, sai do banheiro e deita no escuro.
Não demora, lá fora, ouve o tiro. Um relinchar. Mais um tiro. E exceto pelos gritos dos empregados, tudo está calmo, em silêncio. Vazio.

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