July 28, 2013

I


O gato preto passa pela frente de Ana. Ela olha com desgosto. Odeia gatos. Tem medo.
"Culpa de mamãe", ela pensa, consciente do medo irracional.
Mais gatos passam. Alguns pretos, mas também gatos malhados, manchados, listrados.
Ela segura mais forte a correia do cão. O são bernardo é quase de seu tamanho e mais pesado que ela. É um cão idiota. Ela sempre achou isso dos cães, mas que ela considera necessário. Vive só, em uma casa grande, e queria um cão igualmente grande, mas ainda assim, dócil. Lhe deu um nome grosseiro, Brutus. Mas uma marca de seus contrastes.
Ana olha para os gatos e por um momento, rápido, irreal, sente vontade de acompanhar o grupo.
Olha para o relógio e decide voltar para casa. Está tarde. Não sabe ainda o que lhe ocorreu.

Ninguém contou a ela. Todos tinha medo. Decidiram simplesmente passar por ela em silêncio. E havia o cão. Não estavam preparados. Isso foi há quatro meses atrás.

O templo se esconde da cidade, meio aos prédios abandonados. Ele nasce não em uma única estrutura, mas é composto de restos de um mundo, que se comunicam pela própria existência. Sua natureza é insolente e ri da cidade que se veste contra o céu. "O que eles acham que são?", parece pensar dos habitantes. E para cada um dos locais eles vão, ungidos de um desesperado desejo e se ver, tocar, sentir seu cheiro em meio as ruínas. Correm na lama e asfalto molhado, ignorando sinais e dizeres, lambendo o ar da noite e saltando sobre expectativas de normalidade.

A cidade desperta desenganada. Na manhã inocente, não se percebe órfã. Os detalhes não demoram a aparecer e a ausência torna a infâmia sofrida pelo filho rejeitado, tardiamente percebida. Ratos vagueiam a cidade no fim da tarde. Em bandos grandes, com um caráter indômito, atacam pessoas e instalam o medo. Não se fala de outra coisa. Na internet e no rádio, nas TVs com suas equipes chamadas as pressas, se noticia o horror. É apenas uma pequena amostra, mas todos se assustam bastante. A histeria urbana é sempre a mais eficaz. Durante a noite, porém, quando preparados estavam para uma grande invasão, a horda, dividida em grupos de saque, retorna as sombras. E ninguém, ou quase ninguém, parece notar que, a noite, ressurgem os miados.

Ana passeia com o cão. Seu domingo fora miserável. Quase não resistiu aos sussurros, quase abriu a garrafa. Só, abandonou a leitura e sem esperar mais, levou o cão para passear. Sendo domingo, não percebeu o silêncio e o vazio das ruas como algo estranho. Inquieta, sem bem saber a razão, caminhou além da rota que se condicionara em seguir. Não conhecia bem a região onde estava, poucos passos de onde mora, descobre um mundo habitado que não é seu, outras lojas, mercados, padarias, ruas, lixo, sons e cheiros. Já sentiu essa estranheza antes, tão comum em quem permanece nos padrões e caminhos habituais, quem nunca pisa fora dos tijolos dourados.

E arrastada foi pelo enorme cão. Um bruto, epônimo, com correias fortes que lhe prendiam a mão delicada. "Idiota", chamava a si mesma, por ter um cão tão grande. Ele arrasta ela até um prédio velho, meio demolido. Ela grita com ele. O cão ignora seus ouvidos, segue seu nariz, que draga para fora das ruas, direto para o impossível entranhado de quartos e entulho. O local fede a miséria e a restos humanos. O cão não se abala, não é isso que busca. Em uma sala, escrito no canto da parede, Ana lê um insólito "iscola", em um garrancho... Infantil? No íntimo, sabe que não. Há algo mais aqui, algo que atrai e repulsa, que prefere ignorar com seus brilhantes olhos verdes.

Brutus para. Mais que isso, rígido fica, como devorado pelo medo. O cão, se isso é possível, empalidece. O crepúsculo, que já escurecia lá fora, obriga Ana a usar seu celular como lanterna. Ela o deixa cair no chão, enquanto se arrasta para fora da "iscola". "É impossível", diz o pensamento que se arrasta da sanidade, como ela que tenta fugir pela porta. Até que não pode mais. Esquecera de desfazer o nó quando o cão parou e se vê novamente presa. Puxa a coleira com força e dessa vez Brutus responde. O ganido segue um copiado arrastado para trás e os dois tenta, devagar, sair do local. O cão urina enquanto anda e Ana, percebe, fez o mesmo. Vão, mulher e animal, tomando novamente conta de suas pernas e começam a correr. Ambos, tentando esquecer o olhar de mil gatos, voltados em fixada idolatria para uma estátua feita com a carcaça de ratos, mas que, por um instante, toda a congregação olhou para eles como se tivessem importância.

Ana corre pelas ruas vazias. O cão a segue, talvez mais alucinado que a dona, mais temeroso. Ela chega a casa e busca as chaves. Então ouve os latidos. Se vira para Brutus, que late em sua direção.
- Que foi, Brutus? Cão ridículo, inútil!
Então ela sente. Há um insubstancial tingir de medo, um pavor colorido, e se virando para a casa, de onde jorra o pavor, vê um horror fruta-cor de gatos em organizadas fileiras, sobre teto e seu muro.
As chaves caem. Ela olha para os lados, prestes a correr. E vê os olhos de infância. Um animal familiar, velho, que manca em sua direção.
Brutus late para o ele. Um felino grande, mas magro. Seus ossos podem ser contados por sob o pelo fino de gato de rua.
O cão faz menção de avançar, seja por perda ou excesso de medo.
Ela conta um. Dois. Três. Quatro, cinco. Seis, sete, oito. A gataria parecia não ter fim e se implantavam no cão com fúria, cuspindo e mordendo, esguichando ódio.
Ana treme e senta no chão, chorando, vendo o gato grande chegar perto do que resta do cão.
Ele morde a carcaça com o que lhe resta dos dentes e a arrasta para Ana.
Cercada, ela espera. O gato para, poucos centímetros dela.
E ela vê, com incrível atenção e incremente insanidade, ele escrever na carne de Brutus: An a?
E em meio a noite, bebendo do isolacionismo do ante perante o sonho da cidade, começa sua iniciação.

O iogurte azedou na geladeira. A mulher que ali vivia, se transformou em algo menos, em muito mais. Coletou uma herança que desconhecia e não teve mais utilidade para a caixa de frio. Para as televisões. Fogão. Os interruptores permaneciam intocados por semanas. Os iconoclastia progressiva de tudo que fora, tomou lugar e fez-se em casa. Suas roupas foram rasgadas, as fotos despedaçadas, em brincadeiras de desapego. Não era única. Outras cidades despertavam também, devagar, com cuidadosa e estudada preguiça, num olhar fixado no futuro, uma a uma, iam se constituindo como um só desejo. Um vontade de ser além e antes, incongruente e invencível, lavava a noite com miados e patas correndo soltas.

José caminhava com o cão. Era tarde, mas ele preferia esperar o sereno debandar. O cão, irascível, tentava puxar ele para todo lado. Pensou em ligar para Ana, mas desistiu. Estava inseguro e já estava ignorando ela faz dias, semanas. Não queria unir sua solidão a dela. Buscava um referencial humano, não um espelho. E ainda assim, sentia sua falta mais do que de qualquer outra pessoa. E agora também tinha medo que ela tivesse mudado, que estivesse com alguém. O mundo, também muda para o outro. E sua mão e pensamentos foram quase arrancados pelo cão, lhe puxando enquanto corre pela rua, dobra a esquina e segue por ruas secundárias, algumas que ele nem conhece e uma que, enfim, reconhece. A casa de Ana.

Mas ele nunca foi aí com o cão. O pastor alemão ofegava, mas não era por isso que parou de correr. Partia-se nele a vontade, chegara ao destino. Bem, já estava ali, podia muito bem ir até a porta e tocar a campainha. Mas percebeu algo errado. Perceber não é a palavra, já que tudo estava como devia estar, ele sentia o imperceptível. Pegou o celular e ligou para o número dela. Desligado. Ligou para o número da casa e estava ocupado. Então, devia estar em casa. Mas não havia uma única luz acessa. "Não é tão tarde, é?", pensou ele, olhando o relógio.

Cisco, seu cão, late. Ele olha para os lados e não vê ninguém. Então percebe o brilho. Gatos. Olhos de gatos. Um, dois pares. Alguns gatos passam na esquina da rua. O cão late para eles também. José nunca viu tantos gatos. Oito, talvez dez ao todo. "Um problema de saúde pública", pensou ele. O cão late novamente. Da casa, escuta a voz de Ana, mas não entende o que ela diz.
- Ana? Ana, você está bem?
Ele empurra o portão. O cão late mais.
O portão cede. Está aberto. Cisco não entra. Por mais que puxe o animal se recusa.
- Porra. Tá bom, fique aí.
Ele entra no quintal. De uma janelinha na porta, vê os olhos brilhantes dela.
Ele acha estranho, um truque da luz e continua andando.
Um gato corre por entre suas pernas. Lembrou agora do cão dela, que não vê.
Toca na maçaneta da porta.
- Ana?
E sua resposta é só um rouco, imitado, miado.

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