August 01, 2013
L
Não há lucidez em seus olhos. Lindaci já está muito além disso. Ela pisa com cuidado. A perna ainda não está pronta. As fitas negras circulam sobre e sob a pele, próximas ao pé direito. O curto vestido negro a deixa observá-las. São lindas. E causam terror em seu reino. Ela se senta no trono e aguarda. Não nota o tempo passando, ou se o nota, o ignora. Vidrada, observa as fitas realizando sua mágica, sem nunca sequer piscar os olhos.
Laísa era a única que se aproximava. Pingava colírio em seus olhos. Sentia e cuidava de seu estado letárgico. Alguns, diriam em quase que absoluto silêncio, lunático.
Lindaci só volta a mover-se quando surge a Lua, brilhando sobre si e seu fortim. Uma coluna de luz que pairava sobre a torre, como um holofote, um farol celeste que anunciava a todos que ela era o que restava do velho mundo. Ela era a palavra, o poder, a ordem. E estava louca.
Laísa não ficava durante a noite. De que adiantaria? A tirana do castelo não lhe reconhecia mais. Foram amigas, irmãs, amantes, um amor lésbico que provocou escândalos. Isso, antes do mundo acabar. Tudo era tão complicado antes do mundo acabar, tudo era tão ridiculamente simples e fácil.
Ela se move pela cidade sem pressa, sem medo. Ela sabe que murmuram também a seu respeito. Não se importam mais com quem ela dorme, não se importam mais com seus talentos para o teatro, importam-se apenas com suas passadas e o medo que sentem quando se aproxima. O demônio, o monstro. Lhe tratam como se um leproso nos séculos passados estivesse caminhando pelas ruas. E tudo que ela fez errado foi amar.
Victor termina de comer o pão meio azedo e segue para o fortim. Quer ver a rainha com os próprios olhos. Rainha. Ele conheceu Lindaci antes, jovem, promissora, uma cientista de carreira que tentava aperfeiçoar remédios com base em levonorgestrel. Quem poderia dizer que ela ia experimentar em si mesma? Nela, na amante e mais três amigas? Quem imaginaria o resultado. Ele ainda se sente usado. E o larápio é ele.
Lindaci caminha pelo castelo sem que ninguém fale com ela. O silêncio é tudo que ela quer, durante boa parte do tempo. Todos, eventualmente, aprenderam a respeitar seus desejos. Deixam sobre uma ou outra mesa os dados que precisa ver, leis que pode assinar, e toda a burocracia que uma governante tem de lidar. Ela não se importa tanto. Não mais. Sente falta de Laísa, mas de que adianta? Tudo que restou é uma lembrança. "Lindaci, Eu quero ser livre junto. Não tornar duas pessoas prisioneiras entre si. Esse não é o caminho pra se amar". Uma filosofia tão simples, que reverberava com seu espírito e ainda assim, ela a traiu. Ela precisava mesmo de Victor? Que sentia por ele? A pontada na perna a desperta das divagações. A fita negra flutua, correndo junto a seu corpo, subindo pela perna, passeando pelo tronco e esperando, paciente, que ela abra a boca. A fita negra entra e desce pela sua garganta, e como sempre, a sensação é como se vomitasse para dentro de si. Ela odeia. E deve o que restou do mundo a cada uma delas.
Laísa chega a sua casa. Ninguém vai até esse ponto, todos temem os animais que foram soltos do zoológico. Animais que ela entende e que aprenderam a reagir próximos a ele. As pessoas tem o que temer. Ela sobe a grande pula lá dentro do local dos bichos. O primata vem logo em sua direção. Um gorila divide espaço com ela, seu pequeno animal de estimação. Ela afaga sua cabeça e se deita, cansada, ignorando o cheiro e a lama. Sente tanta dor. É um elemento constante em seu viver. Lembra do dia em que cresceu, quando o pólo magnético se inverteu e por uma fração de segundo, houve uma nova gama de radiações cobrindo o planeta. Todas as cinco foram transformadas. Lindaci pareceu não se alterar, mas isso era só o que podia ser percebido por fora. Laísa? Ela explodiu em músculo. Massa muscular que precisava ser reposta, ossos que se quebravam com facilidade, força que mal podia controlar. Dor, tanta dor. O que os aparelhos de geoengenharia não destruíram, enlouquecidos que foram pela mudança magnética, ela e as outras fizeram em pedaços. Lindaci quase a matou. Lembra dos olhos chorosos, enquanto faixas negras eram expelidas de sua boca, algumas cortando, outras a segurando, envenenando... Uma nova injúria. E ainda a amava a despeito disso. E o bicho-papão vai de novo dormir, chorando, enquanto escuta dentro de si, músculos e ossos, movendo sob a carne, quebrando e regenerando, quebrando e regenerando, quebrando e regenerando.
O bandido sorri. Tinha certeza que seria recebido no castelo, mas não tão bem. Lhe oferecem até mesmo um banho. Um banho! O fortim é, como dizem, um paraíso. A terra devastada a sua volta, onde as pessoas tentam sobreviver em uma cidade que parece teu sido cortada no talo. Nada que tivesse mais de um andar sobreviveu aos desastres naturais, exceto o fortim. Ele lembra das fitas negras no chão. Ele as pisou sem medo, sentindo elas quentes sob seus pés. Vivas. Uma parte de Lindaci, sempre prontas a se levantar no ar e proteger o fortim do que quer que fosse. Salvadora, tirana, tomada por loucura, dizem seus "súditos". Sua tarefa aqui é tão simples: reconquistá-la. Exatamente como os conspiradores suspiraram em seu ouvido bom. Ele só vê justiça nisso, em tomar para si o que é seu, se tornar o Rei do que restou desse mundo, o único prédio que restou em quilômetros de distância, talvez o único que ainda reste no mundo. E poder, enfim, voltar a tomar banho, com água quente e limpa, todos os dias.
A mulher desce as escadas. Os guardas a olham, sem saber bem o que fazer. Não há segredo entre eles. São todos conspiradores. Todos esperavam que alguém pudesse controlar a bruxa. E ela sai, caminhando, sem que ninguém a impeça. Quem se atreveria? A Rainha acabou de sobreviver a uma batalha com a última das fúrias. Esta lhe arrancou a perna. A Rainha sobreviveu, e apenas dois dias depois, desce as escadas como se nada houvesse acontecido. Os guardas sobem as escadas com pressa. Desde que o mundo morreu, é a primeira vez que ela sai do fortim.
Quando chega nas ruas, antes de pisar na lama, algumas das fitas que cercam o fortim deslizam e a mantém milímetros do chão. Outras, formam um abóbada sobre sua cabeça, um guarda-chuva que a protege da fina chuva que cai. Há algo de lúdico na maneira como ela anda pelas ruas, cercada de olhares desconfiados, tristes, alguns francamente raivosos. Eles sabem: é a Rainha. E ela entende que eles não entendem. Para eles, ela sabe, pode até mesmo ser um símbolo do legado ruidoso e moribundo de uma ciência que não deu certo, e ainda assim uma tirana que guarda a si e tesouros do passado em seu palacete. Alguém se atreve a lhe atirar uma pedra, que é coletada no ar por uma das fitas e depositada com delicadeza, na lama. E Lindaci percorre a cidade sem mais incidentes, caminhando sobre as águas, que cobrem o Recife permanentemente, uma lâmina fria, marrom e talvez, eterna.
Victor espera numa sala pequena. Ele nota como tudo é limpo. Como há um misto de novo e velho, e escuta, vindo dos andares no subsolo, a fábricas, os matadouros, as plantações hidropônicas. Protegidos pelas fitas, o fortim se estende para baixo do que foi a cidade, duplicando ou até quadruplicando o tamanho do prédio de quase vinte andares. Ele já se imagina andando por esses corredores secos, checando suas riquezas, pensando em como restringir a distribuição dos bens aqueles que lhe humilharam. Com raiva, desenha em sua mente o nome de cada um dos que pretende punir, letra por letra, em fogo e sangue.
O guarda, vestido em uma armadura de sucata, pedaços de metal, plástico e madeira pintados de negro, o toca no ombro, o despertando para uma realidade que, para ele, é tão boa quanto o sonho. Ele pede para que o acompanhe e o leva até os conspiradores. Os ministros da Rainha.
- Senhores ministros! Que prazer!
- O que você fez?
- O que eu fiz?
- Sim, o que você fez! A Rainha deixou o fortim! Você quer nos matar a todos?
- Eu não tive nada haver com isso!
- Calicanti, o que o ladrão fez ou não, não importa.
- O senhor está certo, Barbos. Guardas!
- Senhores, eu repito, eu não fiz nada!
- Exatamente.
E os guardas levam Victor. E em meio ao som das riquezas sendo construídas, cercadas de um grande vazio de mundo, o som cheio que escapa em um grito do ladrão se abafa em um quarto pequeno, escuro e sujo.
Os conspiradores debatem. Perderam seu coringa. Seria possível prender Lindaci e a obrigar a manter a segurança do fortim? A maior parte acredita que não. Decidem matá-la. Apostam na esperança de que o fortim resista por si só, mas temem que era erga um novo com ela como tirana.
Os guardas saem em busca da Rainha, sabendo que os sobreviventes, serão os senhores do amanhã.
O vento se torna mais forte a cada momento. Lindacy vê timbus, longos como lontras, correndo amedrontados a sua frente. Ela se pergunta se seria levada pelos ventos. Se valeria a pela. Carregada como os lírios destruídos pelo ciclone. Vento e chuva parecem seguir seus passos. Os pombos restantes, levam lapadas de vento que quase os derrubam do ar no qual se agarram com as asas sujas. O antigo zoológico esconde por debaixo da lama as pegadas da donzela. O Monstro se levanta de seu fosso, sentido o cheiro da Bruna. Pensa se não é chegado seu momento, enquanto seus ossos se partem no que deveria ser o mais corriqueiro dos movimentos. Alguns, diante da força de seu movimento, ultrapassam a superfície de sua pele, um afundar ao contrário. A dor não a impede de, com um salto, erguer a glória titânica de seu corpo fora do covil dos leões.
O ciclone chega em seu encalço. Parece medir forças com as duas mulheres. Três forças da natureza, liberadas por erros da racionalidade.
Os guardas, covardes por natureza, se veem pressionados a prosseguir e só param na entrada do zoológico, onde buscam abrigo nos poucos e baixos prédios que restam. Por frestas e escombros, observam as mulheres que são agora fustigadas pelo ar cortadiço. Uma delas abre a boca para o ar, uma boca que se estende, que pede mais do que grita. A outra, facilmente confundida com um prédio, é abrigo para os animais restantes, é guarida, mãe, que os nutre com calor e barra deles a tempestade, mas por vontade que por força física. Logo, o ciclone é cercado por outro, parecido com enorme cabo que se estende do único e último dos grandes monumentos a uma civilização morta, uma enorme, negra fita. Girando dentro do ciclone em sentido oposto, a fita vai sendo acrescida de mais e mais parte de si, que desesperadas, correm do fortim.
No que resta da noite, o ar se acalma. As fitas então deitam sob o zoológico, circundando sua dona. O colosso, segurando em seus braços alguns de seus filhos mortos, a olha com tristeza. A pequena e negra figura, envolta em sua própria atmosfera de um cintilante e rodopiante cetim, se aproxima e lhe estende a mão. A massa de carne se move, ferida. Apenas um toque. Apenas um. Toque.
Os guardas saem de seus buracos e avançam. Os animais sobrevivente, de imediato, cercam as mulheres. Sob os pés dos homens armados, as fitas se erguem. Alguns largam suas espadas e cajados e correm. Outro, em ganância e arrogância, esperam, formando um grupo mais compacto e planejando, sem dar-se conta do que enxergam por trás das fitas, além dos animais.
Seus braços mergulham na carne. A boca de Lindaci perfura delicadamente a carne de Laísa. Parecem-se fundir-se em carne que se ama e que tinha saudade de si. Só lhe resta, fora da pele courácea, os cabelos longos e negros. Os soldados restantes, avançam. Cortam fitas, matam animais. Chegam mesmo a desafiar a carne, até que o mundo se revolta contra eles. Serpentes lhe sobem pelas pernas, fitas se atiram como navalhas e por mais que seu metal abra caminho pelo corpo do monstro, seu coração está sempre fora de seu alcance e logo, logo, o sangue dos soldados se mistura a chuva e seus corpos são esquecidos na lama.
As duas permanecem uma na outra por horas. O sol, em seu ponto mais alto, parece as trazer de volta. Lindaci abandona o beijo, mas agarrada as suas mãos, traz a amante. Laísa, coberta pelas fitas, é Afrodite renascida.
As duas sorriem, sentido o luminoso lânguido dia.
E ouvindo, longe, o cair da torre.
Marcas de um novo dia.
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