July 29, 2013
J
Jacarta. Ele olha pela janela de enjoo (quantos marinheiros de primeira viagem não vomitaram logo ali, pela primeira vez?) e verifica o relógio.
Logo, logo.
Sobe para o convés. Estão quase todos ali, brincando, felizes com o porto a vista. O amor pelo mar só se contradiz pela paixão pela terra firme.
- Estamos quase chegando.
Diz o Capitão, batendo de leve em seu ombro. Sempre atento, consciente das distâncias, físicas e psicológicas, Samuel se tornou amigo e não um simples passageiro. Dois homens que respeitam as distâncias.
- Vai haver jogatina hoje?
- Sim. Ainda não estamos tão próximos. Preparado para perder os cadarços?
- Aquele que me resta? Claro.
Eles sorriem. Sorrisos cansados e francos. Sabem que é a última noite juntos, cada qual vivendo em seu exílio.
A noite chega logo, com ela, uma chuva fina. Samuel pensa no tempo. Pensa em quanto não vai mais precisar pensar.
Mas hoje, com seus ponteiros lentos, ainda importam as horas. E espera ansioso pela hora do jogo.
Ele não espera muito. A ansiedade é compartilhada. Todos são chamados para a sala de cartografia.
O Capitão é quem comanda o jogo. Além dele, Eduardo, João e Bruno aparecem. Todos se sentam ao redor de da mesa, forrada por uma toalha pesada.
No centro, um maço de cartas. Do lado do Capitão, alguns livros. Cada um dos jogadores desenrola ou desdobra folhas de papel. Apesar de não estarem perfeitas, cada um o faz com um cuidado especial, um verdadeiro carinho. Depois, cada um pega 5 cartas do maço.
- Onde estávamos no fim da sessão passada?
Pergunta o Capitão, colocando os óculos. Samuel imediatamente vasculha suas notas.
- Estávamos perto da casa onde Jesus falava, no momento da última ceia.
- Obrigado, Samuel.
- Eu quero usar um jetom e me esgueirar para uma das janelas, quero saber quantos são.
- O que você vai usar?
- Dois cadarços.
- Okay, cubro os dois cadarços e adiciono dois cigarros para uma carta extra.
Eles revelam suas cartas e João vence com um par contra a mão do Capitão, que não tem nada.
- Okay, Mineiro de Jequitibá, você olha pra dentro e vê Jesus e uns 20 apóstolos, homens e mulheres. Eles estão em volta de um jirau.
- Que trem é esse?
- É uma espécie de mesa, João.
Quem responde é Eduardo, antes do mestre, ainda com um dedo sobre o verbete de "jirau", no Manual de Interessantíces. Samuel e Bruno olham um para o outro. Eles se comunicam em silêncio, mostrando ao colega a lista de equipamentos que tem suas personagens.
- Você fala, Bruno?
- Tá. Olha, capitão, eu e Samuel vamos entrar na casa.
- Não vão não.
- Porque não, Eduardo?
- Samuel, nós recebemos ordens de prender Jesus, só isso. E todos eles devem estar armados.
- Mas meu personagem sabe jiu-jitsu.
- Teu personagem o quê, João?
- Sabe jiu-jitsu.
- Não existia Jiu-Jitsu na época de Jesus.
- Como você sabe?
- Olha aqui, página 4978, do tomo VII.
- Você decorou essa porra toda, Eduardo?
- Não, Bruno, não... Ainda.
- Olha, vocês todos estão vendo os discípulos saírem.
- capitão, eu vou encostar em Judas.
- Agora? Eles estão todos juntos ainda.
- Olha, vocês veem chegando uns soldados.
- Eu jogo minha iniciativa!
- Calma, João.
- Eu jogo a minha.
- Samuel, ninguém joga nada!
- Vou pegar alguma coisa pra comer. Você ainda tem jambre, capitão?
- Jambo? Não. Os últimos ficaram ruins faz umas duas semanas. O cozinheiro vai trazer comida daqui a pouco. Senta aí.
- Um dos guardas do templo está chegando perto de você.
- Eu rolo iniciativa!
- NINGUÉM ROLA PORRA NENHUMA DE INICIATIVA! Diabos, parece vendedor de Jiquiti! Baixa o facho! Bruno, você que é o personagem mais social, vai falar com ele?
- Joinha, vou sim. Ei, vocês vieram fazer o que aqui?
- Nos viemos prender Jesus. Os sacerdotes do templo fizeram um acordo com Judas.
- Capitão, eu acho que as coisas não aconteceram exatamente assim. Sabe, de acordo com a página 3275 do volume IV do Manual de Interessantíces...
- Eduardo, sabe onde você envia esse manual?
- João e Eduardo, vamos parar, gente? Vocês tão sendo juvenis.
- Acho que você quis dizer "infantis", capitão.
- Você entendeu. Estou usando de licença poética aqui, está bem? Bruno, voltando, o que você quer fazer?
- Vou continuar falando com ele. Ei, nós também viemos prender Jesus. Podíamos fazer isso juntos. Vocês são quantos?
- 42.
- Joinha. Olha, nos somos guerreiros de elite do Império Romano. Um de nós até sabe Jiu-Jitsu.
- Jiu-Jitsu?
- É, um negócio que nem foi inventado ainda.
- Humm... Está bem. Vou avisar nosso comandante.
- Aaa... Tu é só jagunço, é? Eu mesmo falo com teu capitão. capitão, eu vou me aproximar e falar com o capitão deles.
- Espere. Isso quem fala é o guarda, tá? Espere. Nosso Capitão não quer falar com vocês. Você não é um judeu.
- Eu ignoro ele e vou indo na direção do Capitão. Quero conversa com esse besta não.
- Ele lhe segura o braço.
- Jogo iniciativa!
- Você vai mesmo fazer isso, Bruno?
- Vai iniciar um Jihad!
- Vai não, Samuel. De acordo o Manual de...
- Cara, assim não dá pra jogar nem porrinha.
- Não tenho culpa se ele é um jumento.
- Gente, presta atenção, tá? Vocês vem o grupo de mulheres se afastar dos outros discípulos. Estão indo pra cidade e...
- A ruiva taí?
- Quem, Bruno?
- Maria Madalena.
- Jácomi.
- Vai se fuder, João.
- Mas já sim. Não foi, capitão?
- Foi, João jogou isso sessão retrasada. Você não pode jogar, lembra?
- Porra, mas ela era o interesse amoroso de minha personagem! Como vou fazer roleplay?
- Gente, se liga. Judas tá indo falar com o comandante.
- Porra, muita sacanagem. Pensei que tu só fudia com as personagens de Eduardo!
- Bruno, João, bora atacar eles!
- Calma, Samuel. capitão, que armadura eles estão usando? Eu quero usar a arma que cause mais dado.
- Quem? Jesus e os discípulos? Só roupas comuns, mantos.
- Eu to rolando iniciativa!
- Eu também!
Eles jogam dados de metal sobre uma superfície levemente magnetizada. Ideia do Capitão para evitar que os dados caíssem no chão da cabine.
- Okay, primeiro João.
- Dou um golpe de jiu-jitsu em Judas! Nunca gostei desse sujeito!
- Olha, fazendo justiça, Judas não foi tão mal assim, João.
- Se eu perguntei eu estouro, Dudu.
- Eduardo, e você?
- Eu vou correndo pra nave!
- Que nave?!?
- Samuel, na outra sessão que você perdeu, eles se encontraram com um viajante do futuro, mataram ele e ficaram com a nave.
- Por isso João tem jiu-jitsu?
Todo mundo começa a rir, menos João.
- Fica sendo. Beleza, João e Eduardo fizeram suas ações. Vocês vão fazer o que?
- Eu ataco o discípulo mais próximo.
- Peraí, deixa eu rolar na tabela... Pedro.
- Porra, logo ele? Tá bem.
- E tu, Bruno?
- Vou dar uma voadora em Jesus.
- Tá bom. Todo mundo rola os dados aí que vou anotando os resultados. Vou jogando aqui pelos NPCs.
Eles rolam os dados e o Capitão vai anotando, como disse. Ele puxa fichas de personagens que não são dos jogadores e faz também testes com os dados.
- João, você derrubou o discípulo no chão e está lá agarrado com ele. Vai dar mata-leão?
- Vou.
- Tá bom.
- Eduardo, a nave respondeu seu pedido mental e já está chegando aí.
- Me avisa quando ela estiver aqui. Você tá com a ficha com os ataques dela? Não tá comigo.
- Aqui, pega. Samuel, Pedro acionou o poder dele e virou pedra, sua espada quebra nele.
- Eu uso o anel do poder.
- Anel do poder?
- É, João, na sessão que você faltou, Samuel achou um dos anéis de Salomão.
- Poxa, só eu que não tenho nada legal?
- Você tem Jiu-Jitsu!
- Hilário, Bruno.
- Bruno, você deu uma voadora em Jesus, né?
- Foi. E aí?
- Ele ativou um campo de força e está atirando laser pelos olhos, matando os guardas do templo.
- Porra, capitão, quer forçar, diga.
- João, você consegue dar o mata-leão.
- Bruno, tu faz o que?
- Nem ferrando que esse cara é Jesus. Eu saio correndo para dentro da casa!
- Eduardo, a nave chegou.
- Eu mando ela atirar em Jesus!
- Samuel, Pedro tá crescendo de tamanho, é quase um colosso agora.
- Eu ativo o anel! Ativo o anel!
- Um monte de gênios se materializa no ar e atacam o gigante. Joga 30 dados e me diz quantos resultados deram acima de 16.
- Eduardo, a nave e Jesus estão brigando feio. Dá pra ver agora que Jesus é um robô, mas a nave também recebeu muito dano.
Nessa hora, batem na porta. É o cozinheiro, trazendo uma jambalaia.
- Gente, vamos parar a sessão, tá? Vou só dizer mais uma coisa: Bruno, você encontra Jesus dentro da casa, ele está em estase, mas você desativa o campo e ele salva vocês essa noite.
- Eu preferia ter jogado isso.
- Eu sei, mas estamos nos despedindo, né?
- Está bem, Capitão.
- Samuel, foi bom ter você conosco.
- Eu gostei muito de conhecer todos vocês, gente.
E eles comem, conversam, falam sobre a vida, seus prováveis destinos.
No dia seguinte, Samuel vai embora.
Todos seguem em frente. Cada um com seu caminho.
Uns, indo para países distantes, outros, navegando os mares.
Todos discípulos da imaginação e mestres de si mesmos.
Cada qual com sua história.
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