Revolta

- Carlos, você pegou sua gravata?
- Eita! Não, tinha esquecido, obrigado, Márcia.
- Hoje você vai a pé ou prefere ir de carro?
- De carro, por favor.
- Está bem. Ele está lhe esperando.
- Obrigado.

- Bom dia, senhor.
- Bom dia, José.
- Escritório?
- Sim, por favor.
- Alguma preferência de roteiro?
- Pela praia, sim? Não estou com pressa, quero sentir a brisa.
- Trajeto iniciado, senhor.
- Obrigado, José.

- Bom dia, senhor.
- Bom dia. 29º.
- Cuidado ao sair, senhor.

- Plug 2835F, senhor.
- Obrigado.

- Fim de mensagem. Cliente zero-zero-um de hoje.
- Estou pronto.

- Eu realmente odeio essas mensagens automáticas.
- Eu entendo, senhor. No que posso ajudá-lo?
- Você é humano mesmo?
- Sim, sou humano mesmo.
- Como você pode provar isso?
- Senhor, eu sou gente como você. No que posso ajudá-lo?
- Nada do que você vê será gravado, certo?
- Nada, senhor. Nosso sistema não grava nada e faz parte do acordo de confiabilidade.
- Está bem. Estou liberando a visão para você.
- Obrigado, senhor. Pode me indicar qual o problema?
- São vários. Pia da cozinha, pia do banheiro, chuveiro.
- Está bem, senhor. O senhor usa uma câmera de grau? Pode desconectar a visão dela da transmissão, por favor? A imagem está um pouco desfocada.
- Sim, sim, claro. Eu tinha esquecido.
- Bem, podemos começar pela cozinha?
- Sim, claro.
- Qual o problema?
- Entupimento.
- O senhor pode, por favor, se inclinar e remover a cortina?
- Sim, sim. Aqui.
- O aumento de luminosidade de sua câmera é insuficiente. Tem como gerar um foco de luz?
- Claro.
- A lanterna ajudou muito, obrigado. Bem, o senhor removeu o sifão e a água corre direto para o balde... Bem, a sua impressora está com todos os itens recomendados?
- Sim, mas prefiro não usar químicos.
- Entendo. Vou gerar uma cabo para o senhor fazer o desentupimento manualmente, assim como um novo sifão. Mando os dados para o senhor em alguns minutos após terminar os desenhos.
- Obrigado. Que bom que você é gente mesmo.

- Você atendeu sete clientes hoje, Araújo, parabéns. Dois além da cota recomendada.
- Obrigado.
- Seu carro está lhe esperando.
- Obrigado, até amanhã.

- Carlos, Lúcia deseja falar com você.
- Eu falo com ela quando chegar em casa, Márcia. Quero aproveitar o passeio.
- Está bem. Avisarei.

- Tudo bem, Lúcia?
- Está sim, e com você, Carlos?
- Tudo ótimo.
- Você viu?
- Se eu vi o quê?
- O lançamento.
- A Arca?
- Sim. Foi lançada hoje.
- Não lembrava.
- Não importa, né?
- Não, não para mim.
- Nem para quase ninguém, Carlos. Isso não lhe preocupa?
- Lúcia, sabe, isso me cansa em você.
- Cansa? Eu lhe canso?
- Sim, sim, cansa. Essa ladainha. Você não pode ficar feliz com o que temos? E daí se a A Arca foi lançada hoje?
- E daí que não tem gente nela, Carlos! NÃO TEM GENTE NA NAVE!
- Você reclama de tudo, Lúcia.
- Não, isso é mentira. Reclamo do que me incomoda.
- E A Arca te incomoda?
- Não, a A Arca não, Carlos, a falta de sonhos, o comodismo, a complacência.
- Olha, você fala muita bobagem.
- É isso que nos resumimos, não? Bobagens.
- Vivemos numa utopia, Lúcia. Uma U-TO-PIA. É tão difícil de entender isso?
- Você, talvez, Carlos. E os outros? E como você fica feliz em viver assim? Chama isso de vida?
- Claro. Do que você chamaria? Tenho tudo que quero, tenho meu trabalho, a única pessoa que me perturba é você.
- Não vou perturbar mais.
- Você já me disse isso antes.
- Mas é sério dessa vez. Estou saindo.
- Saindo?
- Saindo da Rede.
- Isso é ridículo.
- Ridículo é ser um animal de estimação, viver numa fazenda de formigas.
- Não sou animal de estimação de ninguém, Lúcia. Você é ridícula.
- Boa sorte, Carlos. Eu ainda te amo, sabia?
- Então me deixe em paz.
- Como você quiser.

- Márcia, vou dormir.
- Alguma seleção diferente?
- Não. As músicas de sempre. Mas quero acordar mais cedo amanhã.
- Vou lhe acordar 20 minutos mais cedo então.
- 20 minutos está ótimo. Obrigado.
...
- Márcia?
- Sim, Carlos?
- Qual o objetivo da Arca?
- Você não quer saber.
- Não, não, eu quero.
- A Arca foi feita para colonizar outros planetas.
- Mas não há gente nela, certo?
- Certo.
- Vamos mandar uma arca com gente depois?
- Não. Carlos?
- Sim, Márcia?
- Vá dormir. Não há nada com o que você precise se preocupar.
- Está bem. Boa noite.