April 23, 2015
A.2
"Me leve até a Lua e me deixe brincar com as estrelas", canta Frank Sinatra, enquanto pessoas continuam entrando no bar. O local vai ficar lotado em breve. Biviri olha para o relógio e pede ao australopiteco mais uma dose. A bebida chega e toma um gole. Estranha o gosto. Olha para Sinatra e faz um gesto, como se tirasse o chapéu para Biviri. Pede ao australopiteco que lhe mostre a garrafa. "Aloka", é o que lê no rótulo. Lembra de alguém com esse nome, muito tempo atrás.
A buzina do carro o assusta. Biviri dá um passo para trás e pega um lenço umedecido, secando limpando a testa do suor. Seu carro está na oficina e não suporta esse calor que chega a turvar a visão próximo ao asfalto quente. Mas são apenas mais dois quarteirões. Chega ao prédio que parece picar o céu. Entre uma infinidade de agulhas, é nessa em que trabalha.
O homem a seu lado puxa assunto no elevador. Nunca o viu antes, mas sente ansiedade no seu aroma. Parece ser contagioso e mal vê o momento de chegar ao seu andar. Mas o homem desce antes, dando um atabalhoado bom dia. A porta fecha, logo de abre novamente sai para o corredor ensolarado.
A luz do sol bate no rosto de Biviri, que olha para Aloka apreensivo. Ansioso. A luz não irá durar. A tempestade que chega é da cor de seus olhos. Um cinza escuro, sempre presente. Mesmo quando não estão juntos, Aloka sabe de seus passos. É seu talento. Abléfaro para o passado e o futuro, segue com altivez, andando pelo barco, ameaça jogar a todos no mar os marujos no mar se não se moverem logo, enquanto ajusta as velas e amarra objetos soltos. Seus gestos são sempre seguros, mesmo que tensos. Por sua vez, Biviri grita com a tripulação, para ser ouvido por sobre o trovão. Sua preocupação é com as ondas e o vento, mas com o que trazem. Os homens e mulheres no navio escutam seu alerta e se apressam em se armar. A maneira como a tempo rola por sobre eles torna claro que não é uma tempestade comum. Aloka havia lhes prevenido antes, mas poucos acreditaram.
Ele bate com o carimbo com força, tirando ele de lá. De lá, lá aonde? Ele não sabe. E carimba mais um documento. Coloca em uma pilha com uma mão, enquanto pega um envelope com a outra. Usa uma espátula, abre um envelope. Outro contrato, algo sobre abóboras, importação. Não importa. Ele verifica o que há de errado, e se nada achar, depois verifica o que está certo. Assinatura. Carimbo. Recebe e responde emails. Olha para o relógio e vê o tempo passar. Tudo tão perdido.
A bebida deixa um gosto amargo na sua boca. "O cheiro é de sangue, né?", diz Miguel. Biviri não o via desde a renascença. E não. Não tinha gosto de sangue. Era um gosto de crânio partido. "Atlantis é só um estado de espírito, amor", dizia a garrafa, que se tornava um cálice. "Aloka?", Biviri disse em voz alta, e todos no Bar Atlantis, olharam em sua direção.
Tantos olhares. "Vai passar as compras ou posso ir na sua frente?", perguntou um homem as suas costas. A moça no caixa olha de forma apática e recebe os produtos. Biviri já teve episódios antes, mas não assim. Tão frequentes. "Vai demorar muito?", pergunta novamente o homem. Sente estar acorrentado ao mundo e suas fugas são um arrebatamento. Talvez seja isso. Precisa de uma fuga. Anda se estressando muito. Ignora o sujeito até o final e sai com as compras. Biviri odiaria uma cena, confusão, violência. Se apressa em chegar em casa.
E seus passos sobre o convém terminam com um solavanco do barco. Gritos ao seu redor, sangue e vísceras seguem em um cortejo de violência. Eles vieram do céu e do mar, como havia prometido Aloka e percebe que a verdade que queria ignorar se fez. Olha para quem ama uma última vez antes de se separarem. É atirado ao mar. Algo se enrodilha em suas pernas e luta contra o tentáculo gigante, rasgando a carne com seus próprios punhos. Heroicamente, Biviri causa dor na besta quando lhe arranca o membro. Tanto poder, tanta força, mas sabe que não poderá impedir o que está porvir. Aloka, com exatidão, previu tudo. Sua força virá com os anos, lhe prometeu a visão de Aloka. Mas hoje, falhará.
O arroto alto o faz girar sobre os calcanhares. Não reconhece o homem, mas sente medo. "Biviri?", ele pergunta. Do cálice, escuta baixinho, "cale-se". E sua língua parece acorrentada. No bar, todos ainda olham para em sua direção. Se vira e tenta ir de volta ao bar, mas o homem estende um braço e puxa seus cabelos. Agora grita seu nome.
"Biviri!", escuta Aloka sobre o som da tempestade, rosnados, lamentos de dor. Vê seu corpo cair no mar e tenta nadar em sua direção. Vê então o rasgo no céu, uma marca que tantas vezes procurou abrilhantar o mundo, trazendo esperança, amor. Uma mentira fantasiada de luz que atinge a água com um estrondo, afastando Aloka mais ainda de si. Biviri sabe que não haverá tempo para despedidas. Só muito, muito tempo. Um universo de abstenção de quem ama.
Paralisado, olha para o sinal vermelho. Quase chegando em casa. "Mais um pouco, só mais um pouco", pensa Biviri. Precisa se medicar, procurar um médico, insiste em sua mente. Então surge o carro, que dobra a esquina e acelera, ignorando o sinal. O cão não vê. Biviri já escuta o latido antes do impacto. Então sente o arrebatamento. O mundo se racha como o céu, mais de mil anos atrás. Da abóbada partida, vê as estrelas lhe sorrirem, atendendo ao seu chamado mais uma vez.
Aloka se afoga. Biviri nada com força, não contando quantas arrobas de criaturas mata com as ondas que cria com cada braçada. Um dia irá chorar por tudo que fez, lhe disse Aloka. Mas como ignorar salvar quem se ama? Um coração apolíneo, que lhe guia o corpo quando sabe que é inútil, pois não é forte o suficiente para evitar a morte que lhe atinge na forma de luz. O punho lhe rasga a face e parte a cabeça, de onde escorrem as estrelas. O braço recua por um momento e Biviri, perdendo os sentidos, se vê salvo no último instante, enquanto escorre para o fundo e o futuro.
"Biviri, eu sei que é você!" e o homem lhe dá um novo puxão nos cabelos. Aloka dispara de dentro do copo, lhe segurando o braço. O homem olha espantado. Apoplético, o homem ainda balbucia um "como?", segundos antes que Biviri o atinja no peito. Os outros clientes fazem um círculo e os australopiteco gritam horrorizados. "Nosso tempo aqui acabou", diz Aloka, "venha me buscar".
O carro nunca atinge o cão. Dos olhos e boca de Biviri, sombras e luzes, cores e aromas, incorporados em formas fantasmagóricos, formam uma barreira que absorve o impacto. O cão late e corre. Exausto, e ao mesmo tempo, renovado, Biviri olha reprovadoramente para o dono do carro. E salta, alcançando o céu.
O gosto do mar sempre lhe foi presente a partir de então. Demorou séculos para sair do mar e não lembrava que era. Sentia a abstenção do amor, arrancado de si com suas memórias. Agoniado, viveu nas sombras, sabendo que nunca morreria. Um dia, deixou mesmo a região, saindo de Antikytera para conhecer o mundo. Levou consigo o cheiro das rochas, a lembrança do abraço das águas, e saudade, de alguém que não recordaria por mais de mil anos.
"Aloka!" gritou Biviri na fronteira entre o planeta e vazio. Olhou para baixo, procurando. Lágrimas que se transformavam em pássaros gritavam também o mesmo nome. Um coro celestial em uma busca que já sabia, era infrutífera. Lembrava aos poucos o que tinha ocorrido e decifrava os sonhos de Atlantis. Olhou novamente para o mundo e mergulhou para Grécia.
"Eu sempre estarei com você, Biviri. Me perdoa, não posso acompanhar a jornada, mas parte de mim, sim, estará sempre com você.", dizia enquanto guardava a cronâncora na caixa de madeira. Trabalhou no mecanismo incansavelmente, desde que tivera a primeira visão. "Nada irá nos separar", dizia Biviri, ainda incapaz de perceber ou acreditar, que já havia perdido. "Você, nós, somos ainda muito jovens. Não percebe? Precisamos de tempo.", insistiu Aloka, mas Biviri refutava isso com um sorriso, enquanto olhava os barcos que iria comandar. Aloka não voltou a falar naquele, o futuro não lhe guardava surpresas, Biviri iria acreditar e fazer o que devia ser feito, até aí tudo estava traçado. E fechou com a caixa o seu dom.
Biviri atravessou o teto do museu como luz por uma janela de vidro. Os alarmes tocaram, mas antes que alguém pudesse tentar lhe impedir, pegou o objeto e voltou a voar, indo para Antikytera. Sabia que quando a cronoâncora fosse ativada, teria de ser rápido. E logo viu o mar e mergulho nele e deixou que tudo voltasse a fazer sentido.
O tempo escorreu e quase o levou para diante quando ia para trás. Viu a luz e as estrelas partindo e sabia onde estava. Atingiu o corpo de Aploun antes que esse matasse a sua versão imperfeita. A luz tentou lhe rasgar, mas as estrelas jogaram e jogaram e jogaram o sol para longe do mar e para o infinito. Novamente a exaustão, mas tinha de procurar Aloka, e com seu corpo enlaçado, deixou que a carcaça de Krounes empurasse ambos para o futuro.
Sob a luz de um novo sol, olhou novamente para Aloka. O fim de tanta escuridão, e o começo de tudo, comprimido em um olhar e um sorriso.
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