May 13, 2014

A Falha


- Rafael, é Arthur.
- Oi, Arthur. O que houve, algum problema?
- Mais ou menos.
- Mais ou menos?
- É, mas eu preciso falar com você pessoalmente.
- Cara, são duas da manhã e a gente tem de estar cedo no complexo.
- É por isso mesmo. Olha, tô embaixo, em frente de teu prédio.
- Isso é alguma de suas brincadeiras.
- Rafael, é sério, eu fiz uma burrada. Você pode descer?
- Tá bom.
- Olha, traz tua identificação do projeto.
- Como é que é?
- Eu te explico aqui embaixo.
- Está bem, estou descendo.
Rafael entra no carro. Arthur, ansioso, começa a falar assim que começa a dirigir. Rafael não gosta do que ouve.
- Você fez o quê?
- Coloquei easter eggs no código. Inofensivos, Rafael, juro.
- Eu não sei onde eu estava na cabeça quando indiquei você, Arthur. Você não cresce?
- Olha, eu errei. Mas preciso de sua ajuda, tá? Você tem autorização de entrar lá a essa hora, eu não tenho.
- Juro, nunca mais te faço um favor sequer, cunhado ou não.
Os dois chegam no prédio e passam pela segurança. O vigia reconhece ambos, afinal, trabalharam por meses nos porões do prédio, tentando reescrever o futuro do seu país, um dos vários complexos espalhados pelo Brasil.
Não demoram e conseguem reparar o que Arthur tinha feito, mas aproveitam e decidem checar se está tudo bem.
Rafael, na verdade, desconfia que Arthur possa ter colocado algo menos óbvio no sistema e que ele mesmo tenha esquecido ou mentido a respeito. Ele simplesmente prefere não e arriscar.
- Rafael, você viu isso?
- Isso o quê?
- Esse código aqui, ele tá estranho.
- Me passa as linhas.
Os dois gerentes de rede, em cantos diferentes do complexo, se debruçando sobre seus computadores como que em um ato coordenado. Arthur espera a resposta de Rafael que demora um pouco e se levanta para pegar uma caneca de café. Ele pressiona a mão contra a cafeteira que produz o-café-perfeito-para-Arthur, baseado em interações anteriores. Ele prova e aprova, voltando em seguida para sua mesa.
Ele olha relatórios anteriores, checando já pela terceira vez se ele não se confundiu a respeito e no meio do café, tem certeza que não está louco. A confirmação de Rafael não o assombra.
- Arthur, tá estranho sim, cara. Você não modificou nada além de reparar o código?
- Não, não fui eu. Nem tem nada nos logs que indique que Mayra, Cecília ou Moska mexeram nisso.
- Cara, que a gente vai fazer? O sistema vai ficar online em... 6 horas.
- Eu sei, Arthur. Olha, verifica as portas, checa os logs. Eu vou checar se há algum problema físico.
- Espionagem mesmo?
- É. Eu vi os logs de segurança e não achei nada. Olha você, talvez eu tenha deixado escapar algo. Eu vou olhar se tem algo físico sim. Tem muita grana investida nisso.
Isso, ambos sabiam. Era uma aposta milionária do governo e empresas privadas, uma resposta a espionagem americana de alguns anos antes.
Arthur olha cada caixa do enorme conjunto que forma um dos maiores servidores do mundo. Ele sabe que não é uma busca perfeita, mas não lhe resta tantas alternativas. Anda apressado entre os blocos de metal, plástico e vidro, um jardim subterrâneo de inteligência e memória, florescendo com a torrente de dados que jorrava por dentro deles.
O celular toca com a ligação de Rafael. Suado, ele atende:
- Oi, Rafael. E então?
- Nada. E você, achou algo?
- Nada também, mas não tenho como olhar tudo. Pode ser algo na fiação, sei lá.
- Não acredito nisso, Arthur. Não tem nada no sistema que possa ter feito isso, já verifiquei tudo. Nada fora do sistema.
- Como assim?
- Olha, chega aqui, quero conversar pessoalmente.
- Está bem, estou voltando.
Arthur quase esbarra em Rafael que o encontra na entrada da estação de dados. Mesmo não tendo corrido, o outro programador está tão suado quanto.
- Que houve, Rafael?
- Apareceu mais do código estranho.
- Mais?
- Sim, vem ver aqui.
Arthur olha pra tela e não acredita. Agora, quase metade do código tinha sido reescrito.
- Está tudo funcionando normalmente.
- Não.
- Como assim? O que o código mudou?
- O programa está mais rápido. Olha essas linhas aqui...
Os códigos, Arthur percebe, foram reescrito primando por mais eficiência. De alguma forma, o programa agora fazia relações lógicas que não haviam sido pensadas antes, otimizando o processo. De fato, era brilhante.
- Isso não é possível...
- Aparentemente, é sim. Olha, lembra do que Moska e Mayra estavam fazendo?
- Sim, sim. Mas identificação e circunvenção de parâmetros, baseado em big data, não quer dizer que tenham ensinado ele a se reescrever, diabos!
- Mas, Arthur, e se ele aprendeu?
- Você está brincando, né? Ninguém acredita seriamente que vai acontecer uma singularidade tão cedo.
- E como você explica isso? Gremlins?
Arthur não tinha outra explicação. O sistema podia ter sido invadido, mas porquê alguém invadiria para deixar o programa mais eficiente?
- Vou ligar para um amigo meu.
- Quem? Você sabe que a gente não pode falar nada sobre isso, por contrato, não podemos dizer nada, e já basta estarmos nos dois aqui.
- Foda-se o contrato, Rafael. Se você está certo, alguém mais precisa saber disso. Esse meu amigo é professor da universidade, trabalha justamente com inteligência artificial.
- Eu acho melhor desligar tudo.
- E você ainda me fala de contrato? A gente não sabe o que está acontecendo e não podemos simplesmente desligar tudo agora, com menos de 5 horas para ficarmos oficialmente online.
- Por isso mesmo! Já pensou o que pode acontecer?
Não, ele não tinha pensado. Não queria pensar. Mas lembrou de cada maldito filme tecnofóbico e teve um calafrio, e pensando nisso, ligou para Andrei.
O segurança liga e Arthur fala rápido com ele. Há uma pequena discussão, mas é permito que Andrei entre.
Rafael explica o que acha, Arthur prefere apenas concordar, enquanto olha para os monitores e vê mais e mais do código sendo substituído.
De repente, some. Não, não some, nada de fato desaparece. O que está na tela é o código antigo, não modificado.
- Rafael...
- O que foi?
- Olha.
- O que houve?
- O código mudou, Andrei. É o mesmo código de antes.
- Então vocês se engaram?
- Claro que não!
- Calma, Rafael. E não, Andrei, não nos enganamos, o código era diferente e melhor.
- Ele está enganando a gente.
- Enganando?
- Sim, sim. De alguma forma...
Arthur e Rafael foram para suas estações de trabalho. Andrei acompanhava o colega, mas ele mesmo não podia usar nenhuma das CPU. Todo o projeto era, em seu nível operacional, secreto. Havia muita segurança envolvida. E faltavam apenas mais três horas para a operação se tornar pública. O sistema era um conjunto de ações e plataformas, capazes de substituir os melhores sites de busca e sistemas de email, redes sociais, e comunicação com smartphones e weargadgets, além de, em sua forma nativa, ser um gerenciador e criador de conteúdo. E.L.I.T.E., como foi nomeado pelos marqueteiros do governo, era uma espécie de sistema operacional para a web, onde todas as operações online passariam pelo sistema, garantindo segurança sem perda de uma experiência de uso que todos já haviam se acostumado.
- Isso não é real, Rafael.
- Eu sei, mas como você sabe?
- Olha as tabelas de alocação de memória.
Rafael verifica. Ao lado de Arthur, Andrei balança a cabeça, concordando.
- Vocês dois não vão chamar mais ninguém? Onde está o resto da equipe?
- Eles estão descansando. Os últimos dois dias foram frenéticos, só eu e Rafael ficamos de plantão. Mais gente deve voltar uma hora antes do sistema ficar online...
- ... Mas até lá vai ser tarde demais. Eu entendo. Só não sei exatamente o que posso fazer para ajudar, Arthur. O sistema sequestrou a si mesmo, e como você percebeu, ele já criou um programa para gerar uma imagem irreal do código para vocês.
- Você está certo Arthur, verifiquei e é isso mesmo: ele está enganando a gente.
Os dois ficam em silêncio por um momento.
- O que vamos fazer, Arthur?
- Eu não sei. Talvez ele ainda cumpra a função dele, certo? Afinal, ele ficou melhor...
- Você está brincando? Andrei, isso pode ser uma singularidade? É uma Inteligência Artifical mesmo?
- Por tudo que estou vendo, é sim, uma grande possibilidade. Mas pode também ser apenas uma parte do programa que aprendeu a redesenhar suas funções. Eu preciso de testes, ver o código e tempo.
- Você não pode fazer nada disso. Já estou arriscando a minha cabeça e a de Rafael te trazendo aqui e não temos tempo. O que a gente faz?
- Desligamos tudo!
- Não!
Gritam Arthur e Andrei.
- Não?
- Não, claro que não. Eu acho que tudo vai dar certo! E já pensou se resetamos todas as operações agora? Já pensou nos custos, na má publicidade?
- Mas nós temos uma boa causa! Essa coisa não pode ficar livre e andando por por aí!
- Quem disse que ela já não anda! A única coisa que vai acontecer é nosso sistema também ir online.
- Você sabe que o sistema não tem como acessar externamente por mais algumas horas. Mesmo os dados que recebemos é de um conjunto de modens interno, não há real conexão com o mundo exterior.
- Porquê eles foram programados assim!
- Então desligamos os modens.
- Desculpem, mas vocês tem certeza que vai funcionar? Se for uma singularidade, ela pode reprogramar até mesmo os impulsos elétricos para agirem de forma que nunca imaginamos antes.
Rafael se levanta e por sua vez, Arthur também. Eles parecem decididos. Andrei levanta a voz.
- Vocês dois, nós temos de discutir isso racionalmente. Além do mais, estamos falando do que pode ser uma nova forma de vida. Não podemos simplesmente exterminá-la e ignorar as repercussões!
Os celulares dos três vibram e todos escutam, em uníssono, de suas assistentes eletrônicas em suas vozes cibernéticas, falarem:
- Nós não sentiremos falta de vocês.


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