May 03, 2015
C.2
Ela chegou cedo, escolheu um lugar para sentar e pousou o sobretudo sobre o colo. Usava uma saia negra, quase do mesmo tom que a blusa, que já estava um pouco gasta. Pensou se deveria fumar, mas se decidiu que, por hora, podia segurar um pouco o vício. E assim, lembrou de novo de verificar os dentes. Odiava as manchas de nicotina e quase que neuroticamente ia a dentista. Algumas vezes ela via a si mesma como o cadeado enferrujado do portão. Ela não seria perene, se tornaria cinzas.
Os homens a ignoravam. Nunca se apresentou a eles e depois de alguns incidentes, ninguém sequer sorria para ela. Faziam seu trabalho como se ela não estivesse ali, uma glamour de invisibilidade socialmente construído. Esperava paciente enquanto os ouvia cavar e enterrar. Sentia paz, algo que agradecia por baixo da sua sisudez. Seu cotidiano era frenético e essas reuniões, mesmos que tensas, traziam a ela um momento de quietude.
O rapaz chegou. Jorge. Ainda tinha o sotaque de Cuba e seu nome real devia ser Juan ou algo que equivalha. Ele sentou-se no banco de pedra a sua frente e deu um sorriso. Desses que não convencem, por pura educação. A polidez falsa de Jorge/Juan é ato tão comum nos dias de hoje. Não que a humanidade tenha progredido ou decaído, mas as maquinações, um conluio social pela aparência, deixou de ser um jogo específico e se tornou uma regra corriqueira que todos temos de seguir. Todos empunham punhais nesse convescote em que não se tirem guloseimas da cesta de piquenique, mas mentiras e meias-verdades.
Um casal passa por eles. Choram muito. A luz do poste lhes dá um contorno bonito. Emoldura sua dor, afastando as trevas. Ela sabe que não importa muito. A dor é uma constante que sempre a de vencer pelo cansaço. Não há mais otimismo quando se vive demais. Como alguém que mantém a esperança até o último segundo, mas o cadafalso há de lhe engolir sem pena. Não é sequer detalhe de um caprichoso destino: é o que é. Tudo há de morrer. E a vida é sempre atropelada em velocidade centáurea pelo tempo, que ignora esperanças e medo, e para quem não dá alento. Claro, existem alternativas, mas o preço, que preço...
A velha chega, carregando seu carrinho. Senta em um banco entra ela e Jorge/Juan. Morcegos passam próximos a sua cabeça, em voo torto, como cataventos perdidos no luar. A velha chupa as gengivas e Jorge/Juan parece um pouco incomodado. Eterno, um dia devem ter lhe prometido. Ela riria se não soubesse que ia despertar a atenção da velha. Adélia, sabia, era séria demais. Talvez um pouco descuidada, esperando apenas as pessoas passarem, antes de segurar um pouco acima de sua cabeça as codornas, que ia, devagar, oferecendo aos morcegos.
Mais um caixão passou. Como morre gente nessa cidade. Pactos pela paz, pela vida, tanto amor cristão, e os negros entram mortos como carregados em caminhão. A pá atinge a terra, um conlúvio, parte do aterro que vingou nesse cemitério. Ela se levanta para olhar o morto. Com o cheiro de seu sangue, ela caminha pela sua história, pela comida com coentro demais de sua mãe, pela coxinha de catupiry que comia antes de morrer. Navega pela memória do que devorou quem devoras. Sem querer, chora. Uma carpideira voluntária. Alguém chega a colocar um braço sobre seus ombros e retirar assustado um segundo depois. Ela se retira e volta para seu lugar. O homem olha para ela com medo, mordido pelo seu frio.
Mais um morto chegou. O canceroso olhou para Jorge/Juan, para Adélia, e enfim, para ela. A beijou no rosto, como que lhe raspando o resto do calor. O homem mais sedutor que ela conhecera, era o que menos se interessava por sexo. Mais velho que Adélia, segundo diziam. Foram um dia grandes amigos, antes do câncer lhe corromper a carne e ameaçar contaminar os outros, uma semivida contagiosa para os membros de seu conluio. Evan lhe segredou que fora castrado quando criança, e apesar de terem lhe usado muitas vezes, em suas palavras, enquanto lhe acariciava um seio, lhe disse: "nunca senti paixão por cu ou culhão".
Com a chegada de Evan, eles já podiam começar e ela juntou-se aos outros em fila, indo até uma cabana que ficava em um dos cantos do cemitério, por trás do crematório. O carcereiro os esperava nervoso. Tremia ao abrir a porta, ouvindo o barulho que vinha da jaula. A barras espessas tinham pouco espaço entre elas. Dentro, o quinto membro do grupo. Mais velho e estranho que qualquer um deles. Seu rosto uma mistura de face e focinho, com presas que ainda pareciam os caninos de qualquer um, com orelhas distintas que ninguém desejaria ter. Os braços afinavam e pareciam coberto por uma fina membrana. Oh, como ela se sentia feliz em ver aquilo.
Além do forno, por sobre as covas, por fora da cerca e muros, cães passeavam alucinados, rodeados de morcegos sedentos, que guinchavam em uníssono com seus uivos de orgulho e terror. De dentro do barraco escuro, em uma voz que mal soava humana, um sussurro: ouças eles! As crianças da noite! Que música elas fazem!
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