May 05, 2015
D.2
Um baleia metálica, nadando e cantando no universo mudo das estrelas. Dentro dela, uma diversa coleção de Jonas, cada qual com seu pecado e nenhum deles, tivera de pescar na vida.
Naid andava pelos corredores, com sua irritação típica. Pensava em Tatia e em seu rebolar. Quase chutava os gatos de Marcel que achava pelo caminho. O tilintar da nave, em toda a nave. Nada havia de dócil nos sons da nave moribunda. E lá estava ela. Inclinada sobre o painel. Ele se perguntava o quanto essa imbecil sabia sobre os dados que desfilavam a sua frente. Naid tinha vontade de lhe dar um dedada e danem-se as consequências, borbulhava na superfície de seus pensamentos um misto de raiva e tesão.
- Que taá fazendo, Tatia?
- Vendo u curso.
- Tendi disso? Dverdadi?
- Maromenos.
- Nem!
- Tendi sim. Óia.
Ela mexe nos controles manuais e um jorro de informação atinge ambos. Trajetória, último contato, status da nave, avarias... Naid não entenda nada, fica apenas confuso e se fixa em seu desejo por Tatia, que bate em sua mão quando ele a toca. Ambos correm pelos corredores, fazendo os gatos fugirem espantados. Marcel entra na sala quando percebe que já foram. Acompanha os olhares dos gatos, que por sua vez seguem a viscosidade transparente e inodora que desce pelas paredes.
Marcel é diferente deles e os teme. Lembra do destino de Daniel, que achou espalhado dois andares abaixo. Diante de si, porém, haviam apenas duas opções: fazer o melhor pelos idiotas, ou ser destruído pelos sistemas de segurança da nave. E ele sempre fora um covarde. Isso é que o tornou perfeito como tripulante, dentro da casta inferior, capaz de manipular as máquinas, realizar reparos e até, o que seria impensável para seus colegas: criar novas funcionalidades.
Os gatos foram clonados a partir de um animal de estimação original, que viera com ele e seu pai a bordo. Daniel amava o gato, Luno, quase tanto quanto gostava de Marcel. O destino dele não fora diferente de seu guardião, mas em momento distinto. A nave, Dinamarca, mantinha grande parte das pessoas em suspensão de vida, com apenas um pequeno grupo que despertava em situações de emergência ou em proximidade de planeta habitado. Mas a Automacia, permitira apenas poucos que não pertenciam aos Donos, que fossem em suas naves. Daniel, Luno e Marcel, viviam cercados por Donos, que incapazes de realizar as menores tarefas sem supervisão, e isso os deixava também frustrados, afinal, como um Capaz poderia ser melhor que os Donos no que quer que seja? Luno foi vítima de um grupo que não aceitou que os gato não os obedecesse. Daniel, duas paradas mais tardes, e três antes da atual, teve destino semelhante, não participando, fosse por sua vontade ou incapacidade, de brincadeiras dos Donos. Ele nunca soube ao certo como seu pai morrera, por quem fora assassinado. Dinamarca escondia os detalhes, como parte de sua programação para proteger os Donos.
Mas Marcel, agora, tinha seus gatos. Ele os havia idealizado, mas Daniel o havia ajudado na fase inicial do projeto. Os animais eram criados dentro da própria nave, nem gato nem máquinas, criados a partir de uma sessão isolada da produção de alimentos. Ambos trabalharam juntos por meses, no projeto mais longo de suas vidas na nave, em que ambos estiveram despertos ao mesmo tempo. Como doulas, extraiam os filhotes das entranhas da máquina.
E assim, Marcel se esgueira pelos corredores e dutos, na companhia dos gatos. Um guardião fantasma dos Donos. Diferente deles, compreende e vê tudo através de seus implantes, sem confusão ou hesitação. Um diorama que observa e participa, porém sem poder mudar os elementos. Ele sabe que não há diálogo entre os que trabalham e os que possuem. Mesmo sob forte edição, a percepção do que houve com seu pai foi clara: ele tentou lhes convencer de algo.
Em seu aposento, Marcel tenta evitar taxar a si mesmo de insano. Porém, pelo que viu através da nave, há uma chance, pequena, e ainda assim, possível, de acabar com essa interminável diáspora. Como nas outras vezes, foi acordado por um motivo específico. Dessa vez, Dinamarca de aproxima de um paneta habitado. Não é a primeira vez, ele sabe, mas esse é diferente.
Quando a Automacia começou o Grande Limpeza, os países do mundo ainda não envolvidos pelo Corpoverno Matrice se viram pressionados entre uma fuga ou extermínio. Poucas foram as arcas lançadas ao espaço, uma última fuga do preconceito e paranoia. Não muito depois, grupos menores fugiriam do sistema solar, de colônias feitas pela própria Automacia. A Revolta dos Ingratos, como foi conhecida, terminou os laços amigáveis, ou escravidão passiva, entre os Capazes e os Donos. A mãe de Marcel desapareceu em uma dessas naves. Pequenas, mas que levavam mais recursos do que sobreviventes, os "dromedários" foram lançadas como dardos para além do espaço próximo.
E a Dinamarca se aproximava de uma colônia, criada com os restos de uma dessas naves. Ele não pensava em sua mãe. O termo era usado com certa elasticidade semântica, já que ela apenas havia doado o óvulo a um dos vários bancos. Parte da maneira como o Corpoverno Matrice mantinha estável a população de Capazes. Os gatos acompanhavam Marcel enquanto ele planejava, caminhando pelo interior da nave. Eles o faziam isso não apenas fisicamente, mas aumentando a qualidade de processamento dos seus próprios implantes, tornando ele e os gatos, uma espécie de entidade única, com pensamento formado e mantido em uma nuvem. Sua ideia era criar uma dimensão através do processamento exponencial, uma singularidade contida e controlada por ele, sendo ele, para suplantar Dinamarca.
Não deveria ser tão difícil. A nave era pouco mais que uma carcaça. Os idiotas corriam pelos corredores, preocupados apenas consigo mesmos, resumidos pelo mesmo hedonismo para o qual haviam sido criados ainda na TerraTM. Seus pedidos faziam as máquinas guincharem, mas obedeciam. Era sua única diretriz... Afinal, "Apenas Obedeça", fora o grande lema da Automacia, e não surpreendente, impregnados foram todos os circuitos pelos Capazes leais ao sistema. Os recursos de Dinamarca, porém, eram limitados. Ela apenas obedecia, canibalizando a si mesma. De sua parte, Marcel decidiu acelerar o processo, era de fato, uma espécie de dádiva que os Donos nunca tivessem aprendido seus limites, que sua ganância tenha sido cultivada ao extremo, direito do berço. De partes ainda não recicladas, fazia mais gatos.
Quanto mais próxima da colônia, maior o equilíbrio de forças entre a nave e o pequeno motim. Marcel a ouvia lamentar a cada noite, através de sombrios dísticos:
Na estrela da direita, para onde vai o infinito
Se vai desdita luz, reflexo de minha semivida.
Então, a comunicação entre a colônia e Dinamarca, pode ser estabelecida. Em uma larga sala, ele se unio aos idiotas mais uma vez.
- Delícia! Delícia!
Urrava Tatia, agora grávida e imensa, enquanto a nave lhe oferecia guloseimas. Como crianças, os Donos se amontoavam em volta de uma mesa que lhes serviam comida de uma concha em seu centro. Marcel tentou lembrar que eles não eram melhores ou piores que quaisquer donos, fossem eles os que permaneceram ou os que foram expulsos. Afinal, dizimar o resto da humanidade nunca foi suficiente, e nos anos seguintes, os donos que tinham mais, lentamente clamavam das outras famílias, seus recursos, devoram o planeta. Eram deuses que haviam escapado do inferno para incendiar o mundo, de onde já não haviam os adoradores que lhe conduziriam a uma temperança.
Na tela central, o rosto de um mulher. Sua tez negra a tornavam uma estranha, e os Donos logo recolheram-se assustados entre os restos do banquete.
A sua língua era irreconhecível, mas foi logo traduzida, tanto por Dinamarca, quando pela nuvem felidae. Eram boas vindas. Marcel esperava algo diferente, indignação, talvez. Revolta. Os mesmos canhões que Europa e Estados Unidos apontaram para a massa de refugiados que seus impérios criaram. Mas, diferente disso, havia cordialidade, um sorriso. Calor. Eram humanos.
Mais firme que nunca, Marcel ordenou que Dinamarca destruísse os Donos em animação suspensa. A nave hesitou, mas se viu obrigada a obedecer: faliedae reprogramava qualquer tentativa de reagir. Para Marcel, não restava mais o que fazer, e pegou um dos talheres que os Donos não sabiam mais usar. Olhou para eles lembrando de Luno e Daniel.
Para a sua saudação, Twala só ouviu palavras mal traduzidas.
- Danosse!
- Doido!
E gritos. A nave então afastou-se. Dias depois, o planeta recebeu uma mensagem, um novo pedido de comunicação. Felidae pedia asilo e queria juntar-se a colônia.
E claro, os gatos foram aceitos.
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