August 21, 2015

G.2

Nosso último beijo ficou numa fotografia. Foi um amor gentrificado. Saia um para dar espaço a outro. Não me importa. Não nos importávamos mais. Não houve traição, mas uma troca acertada: ambos sabíamos que o fim já havia chegado. Apenas nos recusávamos a fechar a narrativa. Fechamos apenas as ruas. Gejú, escondido em sua janela, nos acompanhava pela televisão. Desocupados, olhavam a ocupação.

O ódio, com sua gula, nos beliscava com discursos vazios. Nos pedia currículo, acusava sem medo, a nossa delinquência. Dos novos ágoras, cuspiam com ódio nos seus monitores, telas. Demos gelo. Não se respondem aos cães, apenas se respeita seus dentes. E a polícia não ia tardar a aparecer. Que instituição deixa de abusar do poder quando se sonha gigante. E pequeno, o gárgula, com o ricto permanente, pensava nas mentiras que iria contar no amanhã.

Nosso último beijo ficou numa fotografia. Nem a memória o guardou. Nada ficou. O local virou escombros, que virou prédio, que virou túmulo. Nem a memória o guardou. A cidade involui. Girafas buscam o céu e topam na escuridão proposta, como se górgonas tivessem descoberto seus olhares para o mundo e tudo tornado pedra, escuridão e calor. Recifede, mais os gases agora são outros. Com o riso permanente de galhofa no rosto, o vilão que empesteia a cidade está bem empacotado, não se assemelha, em estética, o resto de comida podre e dejetos inumeráveis, largados no centro da cidade.

A motoserra ceifa mais uma vida. Talvez da floresta, logo também reste o nada, o papel estéril de uma fotografia. Logo, a própria serra, será mais obsoleta que um gramofone. Ninguém mais se importa com legados, não há nada para quem deixar, pois não haverá ninguém. O homem que conduz a máquina não é nada mais que outra peça. Dois anos para viver, se tivermos sorte, escreveu com giz o pesquisador, pó ante pó. Lá embaixo, distante de onde estou, continuam cortando árvores, e eles mesmo sabem: é inútil. A madeira não servira para nada, para ninguém, todos nós estaremos mortos. Seu gesto sequer irá, a esse ponto, apressar nossa extinção.

Não há ginecologista para curar a gonorreia que somos. Não há cura para a infertilidade do mundo. Os rios secaram como o gosto de seu beijo, a sombra de um prédio, vinte e cinco anos atrás, quando ainda viva era a cidade. E de prefeito em prefeito, as górgonas transformaram até o amor em pedra.

No maior deserto em linha reta, após um oceano abandonado, de verde barrento e sujo, que se pontua com o que restam das torres da avareza. Lá, jaz um ex-pântano, ex-cidade. Dizem que do que ficou, levantam gases que corrompem a memória, fazendo jus a sua história. O gato, que trouxe de lá, me arranha a perna pedindo comida. Penso quando vou ter de comer o gato, enquanto derramo o resto da garapa garganta adentro.

Nós deixamos que os gandulas conduzissem o jogo. Não é uma sensação gostosa. O sabor da derrota. Derrota de um povo, de um país, de uma espécie. É um vazio quase tão grande quanto a sua falta, de quem ficou pra trás, escolhendo um diferente inimigo, uma outra falsa esperança. Você plantando no sertão, uma tarefa inútil. Eu aqui, podando os que devoram as árvores. Temos menos de dois anos para viver. É galhofa. Temos bem menos. E cada um, perdido em seu ato mecânico. Você planta. Eu levanto o fuzil e miro, com cuidado, em quem ordena o uso das serras.

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