Adeus, minha Morceguinha.
Ela morreu, me vendo como um vilão. Aquele que a visitava frustrado, lhe forçando a comer e a beber, irritado diante da impotência de mudar algo que escapava de seu escopo. Até que ponto não prolonguei seu sofrimento, alimentando ela (e a mim) de esperança vã, diante de uma doença que nem os médicos entendiam?
Minha filha, prostrada, inválida, só ossos. Os olhos remelentos, os lábios, com aquela coloração singular. Ainda perto do início da doença, quando ela não podia mais com seu peso de tão fraca que estava, eu tive dificuldade em carregá-la para o banheiro. Nos últimos dias, e agora, enquanto a levo para uma cova rasa, ela é tão leve! O coração é que me pesa no peito como se toneladas tivesse.
Qual a vantagem de viver numa era de milagres, quando o único que importa, a salvação daqueles a quem amamos, lhe é negado?
Um ano atrás, partiu a primeira nave colônia para Próxima Centauri, "Xiwang". Seis meses depois, sua missão irmã, "Ehrgeizig", seguiu em seu encalço. Esperança e ambição. De forma suscinta, o motor que move a humanidade em apenas duas palavras. Soube que mais naves irão partir em breve. Tenho até eu mesmo a oportunidade de ir. Eu, que de única coisa especial que fiz na vida, agora a estou enterrando.
Estranho, que numa era de milagres, o mais desesperado dos desejos, nossa sobrevivência, pareça tão difícil de alcançar. "A Ciência tudo resolve", era o princípio que movia muitos que ignoravam a realidade de invernos que quebravam recordes de calor.
Eu acreditava nisso. Enquanto via minha filha morrendo dia após dia, lutava por achar respostas, a despeito da falta de recursos. Nada nos livros parecia corrender ao que eu via. Me tornei médico diletante, mas a medicina também não tinha respostas. Claro, a informação, gigante repositório da humanidade, nossa memória, estudos, conhecimento, se encontra ao alcance de todos, e ainda assim, fora inútil. Ninguém sabia o que era, nós fóruns, nos bancos de dados, em canto algum.
E ela não foi um caso isolado. Minha esposa, incapaz de voltar para casa, viu horrorizada o mesmo acontecer em sua volta, em outro país. Uma praga silenciosa e até lenta, mas evidente. A morte estava longe de ser instantânea. O sofrimento durava dias, semanas, em alguns casos, meses. Aqueles atingidos, raramente percebiam logo que estavam contaminados. A fome parecia saciada, mas seu corpo não recebia o o benefício dos alimentos, podiam devorar um banquete, mergulhar num mar de sorvete, se afogar em comida, e nada disso os nutriria.
Ilhada, em outro hemisfério, o mesmo desespero. Yara vê a mesma escassez e devassidão que eu testemunho desse lado. Pessoas pedindo esmola ao lado de seus holos, casas abandonadas, ruas em que o lixo se acumulou a ponto de não haver mais passagem, incêndios que não irá apagar e o som de tiros, noite e dia adentro. "High Tech, Low Life", como dizia Sterling. A peste, por mais insidiosa e voraz, é só dos horrores que nos soterram, o último que me vejo suportando.
Chega a ser até engraçado, em um humor na sua qualidade mais sardônica, que no mesmo infernal inverno em que surgiram monstros marinhos, como se um passado mítico tentasse nos alcançar, partindo das profundezas do mar, e que a nossa esperança e ambição que partiram para conquistar as estrelas, notei o brilhante azul nos lábios de minha filha. Morce estava chegando de uma festa. A cor contrastava com suas roupas escuras, um brilho que parecia elétrico, um neon na noite. Minha filha, uma anacrônica gótica, em um mundo em que cruzes não mais significavam algo, ou em que a vibrante denúncia de putrefação social tornou-se obsoleto com o "ennui" que marca sua geração. Sua resposta quando eu lhe perguntava sobre a sua escolha estética? "Pai, eu nasci assim", e eu só podia rir diante do sorriso que emuldurava o absurdo.
"Bonito batom", lembro de ter dito, em meio a sonolência do dia quente e exaustivo. Acho que notei a surpresa dela, mas não posso ter certeza. De fato, fora um péssimo dia. Em vão, passei o dia com Yara, distantes, mas juntos, cada um com um holo do outro, falando como se fosse o outro, contando as piadas e terminando as frases do outro, nós, artificialmente inteligentes, nos completando a distância. Ficamos buscando uma alternativa para que ela voltasse para casa, isolados como estávamos pela Linha do Equador. Não havia voos seguros. Nenhum avião iria decolar nas condições de tempo atual. Sequer, navios. O Desastre Climático, nosso novo normal, era um composto de singularidades titânicas: ventos e até ondas de calor e pressão aérea capazes de derrubar o mais robusto avião, tsunamis repentinos e secas oceânicas capazes de destruir ou capturar o mais ágil dos navios. Não houve aviso que ninguém acreditasse, pois estávamos contaminados pela ilusão de que ainda seriamos capaz de reverter isso, mas o esforço plural de tornar o mundo um inferno, não seria revertido pela meia dúzia dos que, de fato, lutavam contra o futuro.
"Bonito batom", eu disse do azul em seus lábios. Ontem, quando eu ainda esperava que, de alguma forma, Morceguinha voltasse a comer e pudesse ver novamente um sorriso ou olhar de surpresa de minha filha, cientistas finalmente conectaram o "Batom Azul", como a mídia chamava a nova pandemia, com os monstros marinhos.
Anos atrás, eu mesmo, no alto de minha ignorância, tentando ser mais esperto do que era, dizia para Yara, tentando impressionar ela em um de nossos primeiros encontros: "Já imaginou o que a humanidade pode alcaçar com essa nova tecnologia? Ramos novos da ciência irão se abrir! Podemos pesquisar também ameaças a nossa existência, como outros mundos sanaram seus problemas econômicos, políticos, o aquecimento global e desigualdade econômica!". Nunca fui tão ingênuo. Claro, o "gap" foi bem explorado. Quem diria que, apenas alguns anos atrás, existiu uma forma de explorar realidades paralelas ao alcance de todos. A tecnologia do ginnungagap foi até popularizada! Quer saber como você é em outra realidade? Aí está! Quer saber se é traído, seguindo seu marido em outra realidade? Aí está! Quer saber como é matar a sangue frio outra pessoa? Aí está! E da cornucópia de saber, pouco coletamos além de pesadelos. Prova cabal de que a humanidade merece o que colhe, ela escolheu a dedo o que plantou. Para cada solução, surgiram novos problemas, muitos, antecipados, e causados, não por erro, mas por ganância, mesquinhez. Os paralelos, eram isso, paralelos, mas não cópias, e de que adiantou saber se a pandemia de Covid-19 assolou outras realidades, se pessoas viam em alguns paralelos ela sendo ignorada sem problemas? Cada mundo era um mundo e o que mais aprendemos é que o futuro era incerto, e dessa incerteza, brotaram certezas fundamentadas em vaidades. Mesmo quando a tecnologia de Ginungagap provou ser capaz de gerar instabilidade na própria física, precisamos perder uma cidade inteira para que as máquinas fossem banidas e os experimentos encerrados definitivamente. "O universo, está se desembaraçando", estampavam os jornais, em pânico. O método de viagem, causava uma explosão entrópica, só notada meses depois de sua popularidade. Em um período de um ano, o multiverso se abriu e se fechou para a humanidade, talvez com medo do que viu em nós.
A bolha educacional estourou pouco depois da terceira grande pandemia, mesmo quando era do conhecimento das autoridades o seu resultado e como a evitar - afinal, como legado do Ginungagap, tínhamois visto o mesmo em tantos mundos. E assim foram se sucedendo "desastres" irreparáveis, mas previsíveis, mas que os grupos oligárquicos, ainda se mantinham isolados de suas consequências ou mesmo tiravam vantagens dos mesmos. Se pode argumentar que desde o começo dos tempos o infortúnio de um homem pode ser a salvação de outro, mas tivemos em mãos ferramentas para que não houvesse mais infortúnios e escolhemos não fazer uso delas.
Não foi fácil criar uma filha nesse mundo, tão diferente daquele em que cresci. Governos cada vez mais radicais se sucediam, tentando sanar problemas que governos, ideologias e fronteiras não podiam resolver, pois sua própria substância afastava a chance de uma solução que precisava de respostas plurais e enérgicas. O mundo, antes globalizado, se tornou mais fragmentado em seu desespero.
Em meio ao caos recente, vi os problemas se agravando. Mal consegui que Morce fosse visitada por um médico, que entrou em meu apartamento de arma em punho. "Tive colegas sendo raptados e levados como escravos para outras regiões do país", desculpou-se ele sobre sua reação a respeito de uma violência nova e ao mesmo tempo, perpétua. Ele a examinou e não viu nada de errado. Não havia explicação para sua anemia, fraqueza. Ela, a despeito de nossos problemas, não havia perdido uma única refeição. Ele cogitou uma possivel bulimia, mas que já havíamos discutido e sabia que não era o caso. Ela comia, mas não se alimentava. Em outros exames e pelos jornais, soube que a doença era causada por um fungo, mas este não respondia a nenhum medicamento.
Um fungo, parte do ecosistema interno das criaturas, havia se tornado uma vitória pírrica contra a espécie que ousou abater gigantes. Monstros que mal acreditávamos que existiam, afinal, em meio a cada pedaço do céu que parecia cair sobre a humanidade, monstruosidades destruindo navios passavam quase desapercebidas. Está aí, mais uma prova do rol de infortúnios que nos soterrava.
Procurei nos registros, mas não encontrei nada nos dados dos mergulhos para outras dimensões que foram dados com o Ginungagap, procurando sobre o "batom azul". Nem achei máquina alguma que ainda pudesse ser usada para explorar além dessa realidade. Se houvesse resposta para o problema, ele estaria aqui. E se não houvesse...
Com o tempo, ela parou de comer. "Papai, você está jogando comida fora", ela dizia, mais sábia que eu. Tentei alimentar ela por maneira intravenosa e deu algum resultado. Mas logo, a doença, a qual eu fui amaldiçoado com imunidade, não apenas havia se espalhado, mas a solução também. Logo, havia escassez também das bolsas com os nutrientes - que nunca foram, é verdade, fáceis de conseguir desde o começo.
Mas minha filha e outras pessoas, eram o canário do mundo. O fungo se espalhou rapidamente também para outras espécies. Dizem, que o pasto brilha azul a noite, com o mar de carcaças de gado infectado. Incapazes de prever a doença e impedir seu avanço, a produção de comida em massa está chegando ao fim.
Jogo a a última pá de terra. Queria ter feito mais.
Fico só, no apartamento escuro, desfrutando dos sons de uma cidade morrendo sem dignidade, mas que vai estrebuchar ainda por vários dias. Queria ter a coragem de desistir. Não tenho mais notícias de Yara desde semana passada. Sequer podemos nos solidarizar com nossa dor. Ainda há água encanada, mas assim como a luz, logo será um luxo no concreto putrefato.
Um amigo veio hoje, fazem dois dias que enterrei minhas esperanças. De sua família, só ele restou. Choramos juntos. Avaliamos o que fazer. Decidimos viver, mas por covardia do que racionalidade. Ele acha melhor saírmos da cidade. Eu não quero abandonar Morce.
Bebemos, bebemos muito. Dias se passaram. Então, veio o tremor, um terremoto onde a terra nunca se mexe. Saímos para ver em tornor e delírio alcoólico, em meio a lágrimas desjadas sobre a memória de nossas famílias, conseguimos nos arrastar para fora de casa onde testemunhamos, ainda distante, um dos leviatãs se arrastando do mar para nos devorar, aboncanhar o mundo são, a torre de marfim tecnológica de promessas vazias. Voltamos para dentro e nos preparamos para partir, chamando quem ainda pudesse ouvir, para fugir conosco.
A visão do monstro, mais caranguejo que peixe, talvez, é o que me faz entender meu amigo em sua petulante vontade de escapar ao inevitável e meu papel nisso tudo.
Não de um coveiro de um mundo, mas de alguém que, quem sabe, pode ainda ajudar a humanidade e construir um legado, a despeito do que ficou para trás, corro para as colinas, para as matas de juremas, para o pó do sertão, para longe do mar, me afastando da memória.
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