Enquanto aguardamos o lançamento em português pela RetroPunk, vocês podem conferir a resenha da 1ª edição original em inglês de Little Fears feita por Haroudo Xavier Filho, e publicada no antigo portal em 1 de junho de 2003 (1.216 leituras). Confiram a seguir.
Little Fears
RPG de horror, Little Fears coloca os jogadores no papel de crianças de até 12 anos combatendo bichos-papões. A premissa parece idiota, até o RPG ser analisado de perto e se entender todo o horror no qual ele se baseia. Little Fears trata de medos reais e ficcionais, com um tratamento cuidadoso para não ofender ao jogador e mestre comum, mas ainda assim o horror ao qual ele almeja é absoluto.
Background
Existem crianças e existem coisas além da escuridão de seus guarda-roupas, armários ou da sombra sob suas camas. Adultos não as podem ver, ouvir, tocar, mas para as crianças, os bichos-papões são um perigo bem real, com dentes, tentáculos, garras, que podem verdadeiramente dilacerá-las.
Little Fears é um RPG ambientado no nosso universo, no qual se joga com crianças de 6 a 12 anos. No universo de Little Fears, o inferno, ou Closetland, se encontra logo além da porta do closet (aqui no Brasil, um guarda-roupa é um conceito suficientemente similar). Dele vem hordas, milhares de bichos-papões todas as noites, para criar medo nas crianças, medo que alimenta o reino de Closetland. Algumas vezes eles carregam as próprias crianças para esse inferno ou destroem lentamente suas almas.
Blair foi particularmente engenhoso em um aspecto de Little Fears que faz o jogo realmente funcionar: após os 13 anos, nenhuma criança/jovem pode enxergar os monstros de Closetland, e começam a racionalizar os efeitos que as criaturas desses reinos tem sobre as pessoas. Sendo assim, as crianças dependem exclusivamente de si e de amigos da mesma idade.
O tema do jogo vem carregado de uma dupla dose de horror. Afinal, não bastam os monstros de Closetland (e tenha em mente que os “bicho-papões” podem ser desde bolas com tentáculos até lobisomens e vampiros, e toda uma gama absurda de horrores), horrores bem reais podem (e dependendo do mestre, até DEVEM) ser adicionados a campanha, sendo desde pais violentos e bêbados, até molestadores de crianças, uma ferramenta a mais que pode ser usada pelos mestres. O livro, no entanto, é ciente das implicações desse elemento e contei pelo menos quatro ou cinco avisos sobre como “isso é apenas um jogo e se você não se sentir à vontade com esses elementos, não inclua em sua crônica”.
O Jogador
O livro reforça algo que é fundamental na criação do personagem: é muito difícil de interpretar uma criança. Sendo assim, não apenas há uma série de dicas que ajudam o jogador como a própria linguagem e o abuso de letras em caixa baixa quando deviam ser maiúsculas.
Em Little Fears, a criação de personagem é principalmente conceitual, o que eu particularmente acho bem positivo. Nesse caso, diferente de outros RPGs (Vampire, Shadowrun, etc) é muito importante pensar na vida da sua personagem e responder com cuidado e de forma extensa o questionário que é apresentado inclusive na própria ficha (no verso dela).
Em seguida, o jogador distribui 6 Playaround Points entre seus atributos, que já começam com nível 2 e podem chegar até nível 5. Smarts (inteligência, conhecimento), Muscle (força física e resistência), Hands (destreza manual e combate corpo-a-corpo), Feet (velocidade e agilidade) e Spirit (Força de Vontade, percepção e mesmo uma maior ligação com sua alma). Os playaround points podem ser adquiridos também ao se reduzir um dos atributos (mínimo de 1).
Além desses atributos, a personagem também tem Virtudes (virtues) e Qualidades (qualities). Os playaround points não podem ser gastos em Virtudes (Soul, Fear e Innocence), mas em qualidade Positivas.
Virtudes são pré-definidas. A personagem começa com 10 em Soul (alma), 0 em Fear (Medo), e sua Innocence (Inocência) é determinada pela sua idade. 8 para crianças de 6 anos, e apenas 2 para crianças com 12 anos. Soul é um atributo secundário, similar ao estado físico (que é definido pelo número final de pontos em “muscle” x 5 e quebrado em cinco diferentes estados de “bem estar/mal estar”). Em ambos os casos, eles servem para definir o quão bem está a criança, seja fisicamente ou espiritualmente. Fear mede o quanto permanente sob a influência de Closetland está à personagem. Innocence, define o quão tola e fantasiosa é a criança, assim como a facilidade com que os adultos – seres divinos – terão consciência dela como algo a ser protegido.
As qualidades podem ser compradas em uma extensa lista, ou mesmo criadas pelos jogadores sob o escrutínio do mestre de jogo. Qualidades negativas podem gerar playaround points que podem ser usados exclusivamente para comprar qualities positivos. A lista de qualidades inclui coisas como “I have a HONEST FACE”, ou “I´m FORTUNATE” ou ainda o “I´m a BOOKWORM”, dando bônus em situações em que ele tenha de parecer honesto, dando a ele um histórico de riqueza na família ou dando bônus no momento em que um conhecimento que se conseguiria em livros viria a calhar, respectivamente.
Mestre de Jogo
Little Fears dá um suporte interessante para mestres, mas de uma forma a torná-lo, antes de tudo. um antagonista, o que não é de todo positivo. De maneira geral, o que é apresentado especificamente para mestres é uma seção sobre como explorar as fraquezas das crianças, especialmente usando os questionários que os jogadores respondem e uma seção sobre os monstros de Closetland, no qual fala do Demagogo e os vários Aspectos ou Sete Reis (cada um representando um pecado capital), e outros monstros menores.
No livro também vem uma seção sobre o processo que o autor teve de percorrer para criar o livro, desde uma pequena aventura que fez com amigos. Algumas aventuras, ou melhor, esqueletos de aventuras são apresentados, mas são fechadas demais, já que apresentam destinos pré-definidos para os poucos NPCs descritos.
O maior problema para o mestre é fazer o jogo funcionar de forma balanceada. Não há muitas regras para monstros, apenas uma idéia de como tratá-los e, basicamente, tudo depende de testes simples (quiz). O que torna um pouco confuso quando você vê monstros com atributos, afinal, como devemos tratá-los nesse caso? O fato deles não tornarem possível a destruição dos Seven Kings, Demagogo ou Abranxis, torna o jogo limitado a campanhas de horror sem possibilidades épicas, que poderiam ter sido idealizadas sem essa barreira.
Sistema
O sistema de Little Fears nada tem de assustador. Ele é dividido em “quiz” e “test”. Um quiz é um teste que não é feito contra outra personagem e o jogador rola 1D6 para tentar tirar um valor abaixo do atributo envolvido no teste. Se ele tiver uma qualidade positiva que se aplique, ele lança um dado extra por qualidade e mantém o resultado menor. Se ele tiver uma qualidade negativa, ele lança um dado extra e mantém o resultado maior. Os “test” são sempre contra o atributo do adversário e são simultâneos: o adversário, se realizar uma ação, lança contra um atributo da personagem. A idéia aqui é que o número seja superior ao atributo do adversário envolvido. Novamente qualidades positivas e negativas entram em jogo, mantendo o maior resultado (no caso das positivas) ou o menor (no caso das negativas).
O sistema é simples e seu único ponto negativo é a confusão quanto aos monstros. Nesse caso, o livro indica que o jogador jogue apenas “Quiz”, mas alguns monstros têm também alguns atributos (mas só alguns), o que torna essa regra confusa.
O sistema de magia é interessante, no qual a personagem em teoria, pode fazer o que quiser contanto que seja aplicado a crianças. Ela pode, por exemplo, ficar invisível se cobrindo com seu “cobertor mágico de estrelas”, ou fazer com que seu ursinho fique com 2 metros de altura e ataque o monstro do armário, fazendo apenas um “quiz” de espírito para isso. O problema é que coisas como “se eu deixar meu sapato emborcado, mamãe morre”, se tornam também reais. Outro ponto negativo para o jogador é que se o “quiz” falha mesmo que seja uma única vez e não há uma boa explicação que uma criança poderia criar para isso, não apenas o objeto ou ritual permanentemente deixa de funcionar, como a criança perde um ponto de Innocence.
Recuperar Soul e diminuir Fear são possíveis, mas desbalanceadas, já que dependem muito da qualidade “Eu tenho FÉ” e quase que exclusivamente dela. Não é possível recuperar Innocence. De uma forma geral as Virtues tornam o jogo mais interessante e próximo de um Call of Cthulhu que é jogado com crianças, mas seu sistema de loucura e como recuperar suas virtues deixam um pouco a desejar. Ele é vago, e nada elegante como o sistema de Unknown Armies.
Conclusão
Little Fears é um RPG excelente mas que precisa de um polimento. Filmes como Monsters S.A. e Cidade das Crianças Perdidas, me vêm a mente como ótimas referências, se adicionados a eles a dose certa de horror. Livros como IT parecem também interessantes para se chegar ao clima adequado.
O livro, apesar de pertencer a uma editora pequena, tem uma boa apresentação gráfica, inclusive com o uso de fotos que dão um clima mais interessante a livros de horror urbano do que os tão batidos desenhos que muitas vezes não saem muito do típico feijão com arroz que vemos nos livros de fantasia e no qual nada ajuda a um gênero que precisa de um suporte gráfico mais forte para se criar o clima adequado. A capa é simplesmente maravilhosa.
O grande problema de Litle Fears é a forma vaga como são apresentadas suas regras e o desbalanceamento que se dá quando a qualidade “eu tenho FÉ” se torna tão essencial para a longevidade da personagem. Eu fracamente espero por uma segunda edição que corrija esses erros.
Nome: Little Fears
Autor: Jason L Blair
Editora: Key20 Publishing
Edição Analisada: 1st Ed.
Número de Páginas: 146
ISBN: 0-9708689-0-1
Preço de capa: $20
Dados utilizados: D6
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