July 03, 2013

A Gatomorfose


Era seu primeiro dia preso ao apartamento. Paulo não gostava disso e tentou mesmo sair de casa duas vezes. Queria ir trabalhar. O pé, engessado, não deixava. Nem seus pais ou sua irmã. Ele ligou para o trabalho, mas o chefe parecia cético. Isso era injusto, afinal, não era ele o primeiro a chegar e sair todos os dias? Mas não discutiu e prometeu levar o atestado.
Era o segundo dia de chuva constante. Paulo não gostava disso e tentou ocupar sua mente. Mas tudo o inquietava, a televisão com notícias de ontem que seriam de amanhã, filmes que não lhe tocavam, livros que não o prendiam. Isso era deprimente, pois o trabalho era a única coisa que o fazia sentir-se produtivo e interessado.
Era a terceira noite com trovoadas. Paulo olhava para fora e o lado de fora olhou para ele. Tinha dois olhos grandes, verdes e brilhavam.
Debaixo de seu carro, protegido da chuva, estava um grande gato negro. Ele não gostava muito de gatos. Trauma cultivado pela família, sempre que falavam em animais doméstico.
Na quarta madrugada de frio numa cidade quente, Paulo foi pra varanda do apartamento. Seus pais se decidiram por morar no térreo, o aluguel era menor, e com tantas dívidas, não havia muita escolha. Ele olhou para o carro vermelho, cor que sua irmã escolheu, e uma das poucas coisas que ele possuía. Agora, o gato morava embaixo dele. E tremia.
Na quinta manhã de um inverno úmido e incessante, Paulo levou leite e comida para a grade da varanda. O gato veio, desconfiado. Um gato de rua. Mancava um pouco, tinha uma cicatriz feia atrás da orelha direita, mas ela musculoso, atento. Como um cão, pegou o pedaço de carne e correu para de baixo do carro, depois de provar um pouco do leite.
Paulo sorriu. Ele achou estranho e tirou aquilo do rosto. Foi bem a tempo, sua mãe já vinha gritando.
- Paulo! O que você está fazendo? Você não pode estar se levantando e andando! Não sabe disso?
- Mãe, eu...
- Mário! Venha me ajudar a carregar seu filho! Já seu viu.
- Eu posso ir sozinho, mãe, obrigado.
Mas o pai surge de dentro do apartamento e segura seu braço.
Sem mais contar os dias, Paulo passou a ir de madrugada para a varanda. Levava comida, leite e água limpa para o gato. Começou a conversar com ele. Falar de sonhos que nunca teve e sentimentos que sempre escondia. O homem se tornou amigo do animal, que o ouvia como ninguém antes.
Não demorou, Paulo, não acordou mais.
O que abriu os olhos, era outra coisa. Ele tinha ganho muitos pêlos, brancos e cinzas, cobrindo os braços, face, e todo o corpo. Ele via diferente. O mundo era um mesclar de sons, visões e cheiros, que o paralisava. E ouviu a irmã vindo. Sabia que era ela pelo cheiro. Pelo cheiro? Mas ele não tinha tempo de pensar e se encolheu no canto da cama.
- Paulo, vai querer comer agora?
- Não, agora não!
- Paulo? Tem um bicho aí?
- Não, Paulina, estou só. Depois eu como.
- Mãe! Tem um gato no quarto do Paulo!
- Um gato, Paulina? E cadê o Paulo!
- Mãe, Paulina, vocês tão surdas?
- Ele tá guinchando, mãe! Chama papai! Traz um rodo!
Paulo não entendia, e enquanto se encolhia, encolhia.
Não demorou e sua família veio expulsá-lo de casa. Gritou, esperneou, implorou. Seu pé ainda doía, mas a bota ficara para trás, enorme.
Bota na qual ele, em um momento de pânico, fugindo de sua doce irmã que pretendia matá-lo, pensou até em usar como esconderijo. Mas fugiu por baixo das pernas do pai, subindo pelo corpo da mãe e pulando para a cabeça da irmã e dali para sala, de onde fugiu para a rua.
Ainda chovia.
Paulo, por impulso, foi para baixo de seu carro. Ouvia os pais e irmã gritando por ele, mas sabia que não iam entender o que ele dizia.
E viu o gato. Quer dizer, o outro gato.
O enorme gato preto olhou para Paulo e mostrou os dentes. Se aproximou, abaixando a cabeça, mas então, parou. Ele o reconheceu. Se aproximou e lambeu o rosto de Paulo e deixou no chão junto com ele. Aparentemente, não era de falar muito.
Nos dias seguintes, Paulo foi aprendendo a ser gato. Pulava mais alto, era rápido. Comeu coisas que nunca se imaginaria comendo e se deliciou com isso. Era um mundo novo, onde ele podia fazer tudo que quisesse, livre.
Mas sentia falta dos pais, de conversar com alguém. Ele aprendeu a falar com os gatos, usando o corpo, miados e ronronar como uma nova língua, mas ele antes fora humano e sentia falta de... Algo mais. Era uma liberdade solitária.
Paulo continuava observando o apartamento e seus pais, que ouviu, iam se mudar. Sua irmã ficou com seu carro, seus pais venderam ou dividiram entre si o que era seu. Mas ele não mais se importava com o que era material. Sentia porém a falta deles. Nem sempre foram distantes, isolados cada um em si.
Mas o tempo passou. Com ele, foi a chuva. A cidade voltava ao calor habitual e a liberdade era ainda maior. Paulo quase podia esquecer a solidão, já que ainda entendia os humanos e tinha outros gatos como companhia. Especialmente o gato preto.
Ele só nunca percebera o quão velho era seu amigo. Um dia, adoeceu.
Paulo insistiu com ele, o levando as portas de um veterinário, mas seu amigo tinha medo. O lugar cheirava aos cães, e os cães cheiravam a morte. Ele vira gatos decapitados por mordidas e seu medo irracional só se juntava a um pavor real de quem a morte testemunha.
A doença de seu amigo piorou e mesmo com Paulo cuidando dele durante todo o verão, pouco podia fazer. O gato negro morreu no dia da primeira chuva de inverno.
O tempo ruim e a falta de lugares seguros, o levaram ao prédio que conhecia bem, passando ele a viver embaixo de um carro.
Sem perceber bem, voltou ao antigo apartamento, de onde os pais se mudaram e que agora, era ocupado por outra pessoa.
Marisa estava presa no apartamento. Não conhecia a cidade, não conhecia ninguém. A cidade, paralisada em meio as manifestações e chuva, a fez cancelar boa parte de suas atividades, escorraçando a sua agenda. Mas ela gostava da chuva e passou a olhar o mundo de sua nova varanda.
Só notou o gato no segundo dia. Os olhos pidões e pequenos, cansados e chamejantes. Havia algo de belo e trágico nele e o observou por um bom tempo. Certa de que não tinha donos, ofereceu leite.
Desconfiado, Paulo bebeu, mas logo voltou para baixo do carro. Ela cheirava bem, mas sentiu medo. Os humanos não o tratavam tão bem desde que se tornou um gato.
No dia seguinte, Marisa trouxe ração pra casa. Não sabia ainda bem o que estava fazendo, nunca havia criado um animal doméstico, exceto um pintinho que teve destino trágico. Mas havia algo no gato que ela gostara. E, quando começou a chover, foi pra varanda, lhe deu comida, começou a conversar com ele.
Um dia, Marisa não acordou mais.
E debaixo de seu carro, só se ouviam miados felizes e livres.


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