July 03, 2013
O Assalto
A mãe treme. Renato tenta de novamente, sentindo-se ridículo. Erra de novo. "Inferno", ele pensa, sentindo o suor escorrer de sua testa nua para o rosto úmido.
- Ricardo, você quer, por obséquio, segurar essa lanterna direito?
A luz se foca melhor no cadeado. Ainda treme. Dois pares de mãos trêmulas numa noite chuvosa, logo ganham mais um, que chega fazendo um barulho que é familiar aos dois amigos, um toc, toc, toc...
- Estão demorando demais.
Ele diz, sem cerimônia e com um toque de raiva.
- Gil, não me incomodo de dirigir enquanto você faz o resto. Quer trocar?
Os três param o que estavam fazendo. Na rua, só a água continua a correr, despreocupada com o tempo.
- Vou voltar para o carro.
Toc, toc, toc...
E o cadeado se parte. Martelo e pino caem na calçada, abafados pela chuva intensa.
- Quebrou?
o grito veio do carro. Os dois olham para o grande pino de metal, mas não veem o cadeado. Ele quebrou, sim, mas não abriu.
Ambos olham para o carro, desolados. Gilberto não os enxerga. A chuva virou torrente em meio a cataratas.
- O quê?
- Não dissemos nada!
Grita Renato.
- Nada?
- Não, nada, Gilberto, não conseguimos quebrar.
- O quê? Olha, saiam daí!
Na chuva, mal enxergam o carro virando e acelerando. Tropeçando, escorrendo, saem da frente, caindo, enquanto o carro bate, se deixando beijar molhado pelo fino portão de metal.
- Você é louco??
Gilberto ignora Renato e vai entrando agachado pela pequena abertura.
- Ricardo, você está bem?
Ricardo balança a cabeça. O aparelho em seu pescoço, encharcado, não emite som inteligível. Renato vai para o outro lado do carro e o ajuda a se levantar, ambos usando o outro como apoio.
- Vocês vão entrar ou querem que eu jogue sais de banho pra meninas brincarem aí fora na chuva?
- Seu...
Renato sente o tênue aperto de Ricardo e não responde a Gilberto. Apenas ajuda, o puxando pelas roupas molhadas, a entrarem juntos.
No escuro, Renato olha para Gilberto, ainda com raiva. "A pessoa chega a certa idade, sabe que não é mais protagonista dessa história em que vive o mundo, que nossa complexidade, em termos gerais, é pouco maior que a de uma bactéria. Essa pessoa enxerga tudo com desconfiança, medo, tudo lhe ofende, a tudo ataca", pensa ele sobre o amigo com a bengala bem talhada.
- Estão com as lanternas?
- Claro que sim.
Ricardo as retira de uma velha sacola de plástico. Ela de Lúcia, sua esposa. Renato a reconheceu logo. Uma sacola que ambos levavam para as compras, nas época em que se usava sacolas de papel. A ruína do amigo, sabe Renato, é menos pela a destruição causada pelo câncer e mais pela perda da esposa. Havia dias que o imaginava quase pairando, apagando-se, tão era o definhar constante. Mas Ricardo reagiu, começou a viver de novo, e então, por sua vez, adoeceu.
Paff! Faz e bengala nas costas do velho, ainda pingando no piso branco.
- Renato, acorda.
- Qual seu problema, Gilberto?
- Meu problema é que estamos perdendo um tempo enorme aqui e nem todos os vigilantes vão fugir da chuva como gatos!
- Você está certo. Ricardo, você tem sua lista?
Ricardo pela a lista que escreveu de todos eles. Só uma precaução. Ele olha para os amigos, escondidos ali, num fim de mundo. Cada qual com suas chagas e agradece a Deus por conhecê-los. Ele dá a lista para Gilberto, o único deles que ainda enxerga realmente bem.
- Vamos lá... Cetuximab.
- Peguei aqui. Ei, moduretic, todos nós tomamos, não é?
Eles concordam com a cabeça e Renato coloca as caixas de remédio em grandes ziplocs que ele trouxe.
- Que mais, Gilberto?
- Betalor, seloken, atenolol, enalapril. Ha, e viagra.
- Viagra?
- É. Já viu minha vizinha nova?
Os três dão risadas.
- Quer que lhe diga sua lista, Renato?
- Eu acho melhor, Gilberto.
- Razadyne, exelon, aricept e cognex.
- Eu acho que não estou tomando cognex.
- Mas está na sua lista.
- Eu sei, mas não lembro se havia esquecido que não estava tomando.
- Olha, já estamos aqui dentro mesmo, coloca na sacola.
Gilberto olha para os amigos, ambos, dois anos mais jovens que seus 73 anos. Garotos. Sorri e começa a passar por debaixo do portão.
- Eu sei que isso é meio constrangedor...
Gilberto e Renato se viram para a voz mecânica de Ricardo.
- ... Mas vocês não querem aproveitar e pegar fraldas?
Os três velhos saem da farmácia parecendo dromedários. Colocam tudo na mala do velho corcel 73 de Renato, que ele já não dirigia faz anos.
No carro, Ricardo acende um cigarro.
- Obrigado, rapazes.
- De nada, Ricardo. Eu precisava mesmo do viagra.
E novamente, os três dão risadas.
O único medicamente que realmente lhes faltava.
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