July 09, 2013
Nosso Objetivo: Paz Mundial
Sua mão cobre o rosto dele. Abre um pouco os dedos e eles se olham pelo pequeno espaço e sorriem. Se abraçam mais uma vez, como fizeram várias vezes essa manhã, mesmo enquanto ajudavam o outro a vestir seu terno, entre brincadeiras e carinhos. L faz um gesto de "força", retesando os braços dobrados, com os punho fechados na altura do peito. Eles sorriem e K começa a caminhar em direção ao pódio.
K cobre a ferida o melhor que pode. A criança esperneia, entre gritos e convulsões, sangra. A bala não perfurou nenhum órgão vital, mal atingiu a carne, mas lhe cortou como uma faca, numa longa linha que percorre suas costas. O berçário é uma cena de horror. Passos surgem da outra escadaria e K faz menção de pegar novamente na arma, mas para, sua face é pura repulsa e começa a chorar. Outro homens e mulheres entram no berçário, suas faces, tão idênticas que poderiam ser irmãos. Eles apontam a arma para K, que levanta o bebê.
As pessoas se levantam enquanto ele se dirige a tribuna. Rostos contraídos, olhos encolhidos, faces vermelhas. K começa a falar. Ele fala por duas horas seguidas. Uma hora e meia antes, todos já choravam. Mas K não estava satisfeito, sabia que para semear um novo mundo, precisava de mais do que lágrimas.
A sala do apartamento tem piso de mármore, quadros originais, uma enorme lareira que se encolhe na parede entalhada. A mesa de jantar está partida ao meio e nas paredes, escrito em AR, a maça dourada dos Erístas. Do interior chegam sons de passos e risos. K levanta a arma. "Sempre são jovens, tão jovens", pensa K, apontando o fuzil para os rostos sorridentes.
Na fila do pão, K segura a mão de L. Não é a primeira vez, nem a última, são hackeados. Pelo AR, as pessoas na fila veem Erro. O discurso é duro. Ele aponta para cada um, lança suas razões, mostra as marcas da revolta em seu corpo. Em menos de um minuto a zona de AR volta ao normal. L está abraçado com K, e ele chora, pois o adulto aperta com força o gradeado da padaria. Seu rosto está vermelho, seus braços tremem.
As pessoas aplaudem. A cada degrau do pódio, K recebe ondas de som cada vez mais fortes. Ele sua. Ele não sabe o que dizer. Ele sabe, mas não exatamente o que dizer. Eles o olham com grande expectativa. Ele é "K", O K, não qualquer outro. Ele? Ele treme como um adolescente diante de uma garota que ama, um tremor sutil, mas que colore cada um de seus gestos. Ele termina de subir a pequena escada e olha o microfone. Uma relíquia. Assim como como ele, assim como esse lugar. Nações Unidas. E sem mais degraus para subir, ele sabe que precisa elevar a si e tudo isso. as relíquias precisam de um futuro.
"Meu nome é Erro", diz a máscara. Ele cheira mal e K percebe que Erro é de fato humano. O homem por detrás da máscara coloca o rifle no chão. K está cansado, não poderia reagir, mas aprecia o gesto e se levanta, estendendo a mão. Erro se aproxima e repete o gesto. Os homens e mulheres que o acompanham, relaxam. A sua volta, pouco resta, apenas a base militar arruinada, as crianças e soldados feridos, e K não entende o que Erro pode ganhar com isso. "Meu nome é K", e ele não precisa dizer o resto, seu número e logo é visível para todos. "Nos estamos resgatando vocês, K", a voz dele é de um barítono suave, bem diferente do tom dominante, as vezes raivoso, com que fala a população através de seus hackeamentos. "Mas por quê?", pergunta K, com até num tom raivoso, "O que vocês ganham nos deixando vivos?"
K saiu da caixa já com raiva. Ele olha para a figura humana e a ataca sem pensar duas vezes, não esperando sequer sua visão entrar em foco. Uma mulher abre a porta. Ela é maior que ele. Ele calcula imediatamente como matá-la com um mínimo de movimentos. Então ele ouve o som. Não é possível descrever o som. Não é um som que entra pelos seus ouvidos, ele parece instalado em sua memória e ele, satisfeito, senta no chão. Agora, um homem entra na sala. "Ele parece funcionar muito bem", diz o homem. "É, eu gostei também. Estava com medo que esse lote tivesse sofrido problemas com o transporte, mas sua reação é até acima da média", ela diz, olhando e mostrando as informações em uma tela compartilhada, que ele observa pelo seu próprio AR. "Ele hackeou a gente!", diz o homem, com espanto e um sorriso. "Adorei esse modelo. Artur, encomende mais quatro lotes", ela diz olhando K com intensidade. "Pelas especificações, ficam prontos para ações em menos de duas semanas, senhora", o homem dá uma pausa, obviamente consternado por não conseguir defender-se de um segundo hackeamento... "Ou espero todas as unidades chegarem, antes de começar a operação? O novo lote deve demorar pelo menos dois meses, soube que há grande demanda". K se cansa de ouvir a conversa. Ainda deitado, fecha os olhos e logo dorme. Quando acorda novamente, tem um fuzil nas mãos.
Ele enxerga seus pêlos crescerem enquanto espera suas ordens. Quando finalmente chegam, a cidade já está ardendo. Por três dias K esperou nas montanhas que circundam o vale onde está a cidade. A fumaça, provocada pelos incêndios, marca comum do avanço dos erístas, ajuda o grupo a avançar sem resistência. Pelo AR, ele vê os pontos de inserção, onde cada grupo entra e para onde se dirigem, mas não vê muita razão para estar aqui. A cidade está morta. K se move entre prédios que se tornaram lápides de um massacre. Mais ordens chegam, os tiros passam junto de sua cabeça, os pontos no mapa se apagam. As lascas de pedra ferem sua pele, mas está protegido das balas. Seu feed lhe dá o status das tropas e agora recebe mais ordens. Outras nações mandaram tropas para a mesma cidade, há uma fábrica de Ls no hospital. Ele segue para o hospital para destruir os modelos. As balas ainda ricocheteiam ao seu redor, mas há um novo sentido de urgência. Ele entra por uma igreja, um dos alvos eristas. Ali, diferente das ruas, não há mortos. Ele vai de prédio em prédio por passagens construídas na destruição. Nota que menos de 50% de suas forças ainda sobrevivem, mas ele mesmo não vê oposição, até chegar ao hospital, onde reconhece pelo menos quatro diferentes bandeiras e um egoísmo suicida.
A neve cobre suas botas. Depois, a tundra, dura e seca, fere seus olhos e pele. K está cansado. Ele carrega L em uma espécie de mochila improvisada. O bebê recebeu cuidados e irá viver, mas a cada dia, ele passa por mais modelos e humanos que, feridos, não aguentam a marcha. Os erístas, porém, não desanimam. Não festejam mais como nos primeiros dias, mas se reúnem a noite e conversam, planejam, sonham. Falam de suas famílias, de seus amores, de esperanças. São pessoas que não tinham mais nada e agora, eles tem um futuro. Erro não é mais heroico que nenhum deles, mas isso só reforça a coragem de todos. São todos iguais, negros, brancos, asiáticos, homens, mulheres, velhos, crianças. Não passavam de escravos que iriam ser substituídos pelos modelos, e agora, podem lutar novamente pelo seu mundo. K não consegue deixar de admirá-los e sentir que é também parte deles. E sente o café quente que lhe é oferecido por outro que está ao redor da fogueira e percebe, protegido apenas pelas estrelas e o fogo, que achou um lar entre essas pessoas.
O som do senado vazio, um templo a um deus morto. K esperava resistência. Onde estão os erístas? No chão, só se vê o símbolo deles, maçãs pintadas de dourado. No AR, finalmente novas instruções, mostrando que o inimigo está no teto. K segue a rota inscrita em sua retina. Os degraus passam sob seus pés como uma mancha. E duas balas o atingem no peito. A pesada e negra armadura, sustenta o impacto. Ele nivela seu fuzil e responde aos disparos. Um erísta cai morto. O primeiro de muitos. No teto, liberta os representantes do governo quando já chegavam dois enormes helicópteros para os transportar. Recebe novas instruções e volta pelas mesmas escadas. Para sobre o cadáver. Era uma menina. Luciana, 14 anos, diz seu chip, junto com mais informações que não parecem ter importância. K sente remorso, fecha os olhos negros dela e prossegue. Há muito trabalho a ser feito, antes que os erístas terminem de "libertar" a cidade e se movam para a próxima. Os "neo-gafanhotos", como são chamados pela mídia. Canal ilegal. Mas que ele hackeou para ver. E pelo olhar dos outros K, ele percebe, também leram em algum ponto e entendem o que sentem agora. Culpa.
L chora. K sai pela porta. Ele anda nas ruas da cidade, observando observado. Ele está cansado. Irritado. Não são estados de ânimo como compreendem os humanos, mas uma fadiga gerada pela falta de ação, uma ira que só pode ser liberada com a violência. Ele leu sua planta genética, compreendeu seu plano fisiológico. L é o único filho que terá. Modelos foram criados sem a falha característica dos humanos, são dependentes do estado no que se refere a sua permanência. Eunuco 2.0. Mas com toda a agressividade de um adolescente, sempre. L não entende isso. Ele foi abortado, abortado por uma bala, por uma cidade em chamas. L é mais humano que qualquer L. E viverá tão pouco. K esta fadado a enterrar seu filho. Ele chega em uma biblioteca. A humana o olha com um misto de medo e desprezo. Um dinossauro que odeia os mamíferos. K procura um livro específico. Desobediência Civil, um livro capa preta. Ele olha para as estantes e nota que mais e mais livros podem apenas sair daí com prescrição política. O livro deveria ser fino, mas ele o abre na página 333. Em poesia política, sua ordens, o que e quando deve sabotar. Como. K volta para casa. Abre a porta e, sorrindo, abraça L.
O pódio é o ponto mais alto e solitário. E o mais caloroso. Ele chega para repetir uma mensagem que todos ali já sabem. Ele chega para destruir o mundo. É uma mera formalidade e seu discurso é curto, quase que ditando a música de Lennon, linha por linha. Ele anuncia que no prédio, se instalará um ponto de rizoma, uma central eletrônica de um governo mundial onde cada um é representado pela sua voz, o supremo anarquismo, a liberdade. E o mundo acaba, e quando K começa a descer do pódio, começa a paz.
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