August 05, 2013

O


- Obrigado.
- Não por isso.
- Não?
- Não.
Ela sorri. Esperando que ele faça o próximo movimento. Nota seus cabelos brancos, o ganho de peso. "Ele é tão antiquado.... Mas é parte de seu charme", ela pensa.
- Então, como está sua vida?
- Ora, você devia saber. Está tudo lá.
- Eu não gosto de bisbilhotar as pessoas no REMwire.
- Eu não penso assim. Afinal, toda informação que está ali, eu mesma que coloquei para que as pessoas vejam.
- Sim, sim, eu entendo. Acho que é tabu mesmo. Como olhar um diário de alguém que alguém esqueceu em um parque...
- Hahaha! Você lembra disso? :)
- Lembro sim. Você deixou no chão, perto do pé de oiti.
- E você não leu...
- É, eu não li.
- Está bem, você venceu. Por onde quer que eu comece?
- O que fez depois que saiu do colégio.
- Uau. Vai ser uma LONGA história.
- É, eu sei.
Ele sorri, puxando algo da carteira. É uma música. Ela sabe qual é. Não gosta. Fala agora, em um tom mais sério.
- Você é um otário, sabia? Não precisava disso, não agora. Podia ter sido tudo cordial.
- Eu sei. Mas apesar da pele que vestimos, acho bom manter claro os motivos pelo qual viemos aqui.
Então... Que fez depois que saiu do colégio?
- Você não tem tudo aí?
- Talvez. Mas quero que você diga. Por favor.
- Eu fui fazer Comunicação na UFPE. Terminei em 2018. Trabalhei em redação, me tornei editora, quando tive oportunidade, preferi seguir a carreira como ombudsman.
- Quem fez o convite?
- Zeca Barros. Você conhece, também estudou com a gente.
- Sim, lembro sim. Tinha mania de dizer "omérico". Por um bom tempo me perguntei como chegou a um jornal.
- O pai dele.
- É, eu sei.
- E você?
Ele olha desconfiado. "De quem é o interrogatório então?", ela pensa se não é isso que ele pensa.
- Eu o quê?
- Como foi sua vida depois do colégio?
- Você é ótima.
- Era o que você dizia.
- Ainda magoada?
- Eu? Não. Todo relacionamento tem uma obsolescência programada, não?
- Sim, de acordo com o Omnimodo, tem sim.
O respeito com que ele diz o nome da IA lhe dá um pouco de nojo. Ela sabe, nunca irá se adaptar, e o interrogatório é uma farsa. Ela está morta desde que se sentou na mesa do restaurante.
- Afinal, você vai dizer?
- Sim. Não vejo um problema nisso. Temos todo o tempo do mundo. Quando eu saí do colégio... Bem, lembra de nosso papel no desaparecimento de Amarildo?
- Sim, claro, por isso eu saí do Rio.
- E do partido.
- Ops.
- É, um grande "ops", na visão de todos os seus amigos, Carina.  
- Nem todo mundo sonha em ser um terrorista pro resto da vida.
Seu avatar se tensiona. Se estivesse ali, teria batido nela, mas é só mais um holo.
- Bem, eu, Ricardinho e Félix, levamos Amarildo para o Sul. A coisa no Rio só piorava e então, matamos ele, foi aí que a ABIN nos achou.
- Eu nunca soube do destino dele.
- Mas era claro, não? A polícia tinha seus próprios motivos para não dizer porque ele foi liberado, e nós tínhamos o nosso próprio. Você sabe disso.
- Sim, e eu concordei, mas ela uma criança. Valeu a pena?
- Para nós? Para o Omnimodo? Claro. Em retrospecto, você sabe que sim.
- É, é verdade. A AI começou como uma forma de substituir a PM, não foi?
- Exato. Em alguns estados, como em Pernambuco, a solução foi todo mundo andar armado. Mas não invejo vocês.
Ela bem que queria ter uma pistola agora. Mas o Om não permite.
- Como você chegou ao Omnimodo?
- Não lhe responder isso. Mas trabalhei fazendo serviços da ABIN enquanto eles me permitiram seguir uma vida em paralelo, com nova identidade. Fui fazer engenharia de software.
- E os meninos?
- Eles nos separaram. Nosso contato era pequeno. Mas eu sei que eles morreram.
- Obsolescência programada?
- Não tenho certeza.
- Você prefere ser um orgânico?
- As vezes. Envelhecer tem suas desvantagens. Mas não quero me tornar um holo. Você gosta, Beatriz?
- As vezes. Não foi uma decisão fácil. Correndo o risco de ser sentimental, você influenciou nisso.
- Eu?
- Sim. Sabe, Michel, relacionamentos e o amor, não tem uma obsolescência programada, por mais que o Omnimodo deseje isso.
- Isso é heresia.
- Talvez. Mas prefiro seguir o Om.
- Eu desconfiava. Qual motivo de seguir uma religião para digitais? Não é tolo, já que você vai viver pra sempre? O Om é um verdadeiro ornitorrinco de conceitos, Bia.  
- Não tão falso quanto o Omnimodo.
- Eu me pergunto se você quer ganhar pontos comigo pela sua ousadia.
- Não acho que seja ousado ofender um ogro. Afinal, vocês logo vão morrer, quer sua IA continue ou não. Que será de você daqui a um século? Dois? Mas eu estarei aqui, Michel. Não sei se ainda estarei amando, possivelmente sim, mesmo que para provar que seu Deus-Máquina é falho, mas estarei aqui, com certeza.
- Haverão mais "ogros", como vocês chamam. Temos orgulho de sermos assim, feitos de carne, servindo o bem comum. Menos míticos que vocês. Você não passa de uma moda, Bia. E se tudo der certo, nosso orçamento vai permitir expandir o Omnimodo.
- O Om não vai permitir isso.
- Então que você comece a rezar mais forte. Eu não entendo você. Se ainda me ama, porque se tornou... isso.
- Chega um ponto que se deixa de querer esperar, que a carne não lhe dá mais chance de viver e eu tive câncer. Ovário. Eu podia morrer, não me faltavam motivos, estava cansada de tudo, ou podia ainda esperar.
- Então é por isso?
Ela olha para a música na mão dele. "Orora Analfabeta", de  Jards Macalé.
- Sim. Foi por isso. Não sabia se você ia notar a modificação, ou se alguém ia conseguir decriptar, mas foi por isso.
- O Omnimodo não gostou.
- Imagino. E você não e pergunta sobre os motivos que levam uma IA a resguardar com tanto preciosismo a cultura de um momento que já morreu?
- Não vou discutir os planos do Omnimodo com você.
- Seria Heresia?
Seu sorriso congelado de quando tinha 30 anos, paira perto do rosto dele. O cinismo não se perdeu em seu holo. Ele será eterno.
- Eu vim pedir que você não me contate mais. Não quero ter de deletar você.
- Por um momento, pensei que era só isso que você queria, Michel. Eu te envergonho, não?
- Não, Bia. Eu tenho pena de você.
- E eu de você, meu amor.
- Você não sente mais isso. É só parte de sua programação. Só isso.
- Talvez. Mas é o que sinto. Amo o seu rosto arruinado como amei sua face adolescente. E não há religiões e IAs que me impeçam de sentir isso, até que a última estrela se apague.
- Eu também senti sua falta. Admito. Mas apenas falar com você sobre essas coisas...
- ... É heresia. Eu sei. Mas posso te pedir um favor?
- Sim.
- Saia do onírico. Eu quero te ver de verdade.
- Qual a diferença pra você?
- Você realmente não faz ideia. Ser um holo não é tão diferente, Michel. Eu quero ver você uma última vez.
- Está bem. Onde?
- Eu estou na frente de seu hotel. Aqui, na orla.
- Sempre o mar, não? Com você é sempre o mar.
- Sim, meu amor. Até fantasmas eletrônicos são saudosistas.

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